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Apresentação: Stephen Z. Fly apresenta Daniel Estefani




















Olá caríssimos, como estão? Cá, estamos na medida exata da boa ventura. Adoramos vossa carta, as fotos e principalmente as canções nos enviadas. Somos gratos pela fraternidade e carinho. Chove fininho em Lisboa e, Miracel e Liége dançam quase sem parar, ao que parece horas, as gravações do Cordel do Fogo Encantado e do Mestre Elomar com suas cantorias telúricas; nestes momentos lembramos sempre do Brasil e de todos que aí estão nesta soberba terra. Eu com um velho walk-man K7, contraponho em meus reclusos e envelhecidos ouvidos a suave “Auf Flugelm des Gesanges” de Mendelssohn, alguns alegros de Haydn e incansavelmente o Tanhauser. (...) Mando-te obra completa do Pessoa, em excelente edição lusitana. E te enciúme, irmão-rato que me disseste que és, encontrei uma edição raríssima de nada menos que a Hypnerotomachia Poliphili, atribuída incertamente ao dominicano Francesco Colonna (1433-1527), e pasme! Edição veneziana de 1499, primorosa em gravuras oníricas e que, soube através de um amigo, somente eu e José Mindlin o possuímos nas Américas. Garimpava zeloso num sebo em Amsterdã, e eis. Cheguei a estremecer ao tocá-lo. E mais feliz ainda regozijou minha alma quando percebi que, o pequerrucho e avermelhado irlandês, proprietário da espelunca, desconhecia em absoluto a preciosidade daquele compêndio. Comprei-o à custa de um paciente mas ditoso regateio. Vivas! Vivas! Entretanto, terminei por sabotar nesta empreitada a posse de um excelente Ovídio, patente: por puro desmantelo do pecúlio. Contudo não me esqueci de ti nesta campanha, mando-te a não menos excelente Introdução a Filosofia da Arte, de Schelling, obra que proclama a arte como sendo o puro extravasamento do absoluto, e que por pouco não abandonei numa mesa do Coffees & Djamba, veja, por pura poética de matar as saudades brasileiras saboreando um Jacú-coffee defumado in-ruderalis. Coisas da Holanda e das raízes pernambucanas de Miracel.
(...) Abraços no Reinoldo Atem; Rio Apa (os Vivos e os Mortos há muito merece uma atenção mais aprofundada da crítica especializada. (...) E então, cadê o Miguel S. Neto? E nossa querida Heloísa? Elogiei tanto a analise de ‘Senhora’ que ele fez na Gazeta. Assim como me estarreci com a sutil beleza com que Heloísa dissertou a cerca dos ácidos morangos de Caio Fernando Abreu no Jornal do Brasil. (...) O Miguel e a Helô são as pessoas certas para esta empreitada).(...) Sinto saudades do João Antônio. Lembrei dele relendo uma resenha que escreveu para o JB dissecando o livro Bolero’s Bar do Wilson Bueno: “O artista é um cão indomável”. Concordo com ele. O Wilson é um destes indomáveis que, além de fulgurar como uma das mentes literárias mais brilhantes do país, tem o mérito de ter conseguido através do Nicolau, influenciar cabeças primorosas de uma nova geração de poetas e prosadores. (...) Abraços também no Joel Moreno, Tezza, Scliar e no Décio. Adorei teres referenciado o Marcos Prado e o Thadeu Wojcechowski, dois poetas do mais grosso calibre, que há mais de trinta anos são sensacionais e também estão merecendo releituras e novas interpretações críticas. (...)
Deixemos por agora as ‘afinidades eletivas’: grato Goeth; debrucemo-nos sobre minhas impressões acerca de tua Poesia e Prosa para Além de Nós Mesmos: O Sol, o Tempo e o Silêncio, que me chegou à custa de dois meses de atraso e, que consegui a expensas resgatar na alfândega. Foi tal o desanimar com os procedimentos burocráticos, que duvidei que os patrícios e eu falássemos a mesma língua; por pouco, não me obrigam a pedir-te vexatoriamente uma outra remessa e justaposto por puro sarro, não lhes taco brasileiramente uma piada de portuga.(...)
Fraterno, sereno, sinto-me assim um garoto com um brinquedo novo, toda vez que ganho ou adquiro um livro, e o grande prazer continua sendo a tridimensionalidade da composição: capa, arte gráfica, tomo, texto, tipologia e etc. Sempiterna Temptatio. Apalpar, folhear, manusear, grifar, comentar, indicar e enfim, usar o livro até este carecer de curativos ou como alguns de minha estante, vivos através de esparadrapos para que assim, seja estável e duradoura a Galáxia de Gutenberg e as duas missões de sustentação desta fé se cumpram: a do autor e a do leitor.
Que felicidade me causou este broto, não apenas por apreciar teu texto ou, conhecer-te pessoalmente a pouco e já considerar-me teu amigo, mas pelo fato de estreares com humildade aos olhos públicos tua pujante literatura, que por força, pelo que sei de tua teimosia, há quase duas décadas vem sendo difundida somente entre um grupo seleto de amigos, dos quais hoje faço parte e, apesar de minha já consolidada maturidade, sinto-me um jovem privilegiado em confabular contigo a cerca dos infinitos mistérios da Occulta Philosophia.(...)
Estou perplexo com tua maturação, afinal, a prosa não é musa de assédio fácil e conversa que flui sem empecilho é arte pura, e a tua atingiu o vigoroso status da técnica. Não falo desta que dá origem aos manuais, mas aquela suscitada no aprimoramento do ofício, no edificar com ardor, na lapidação incessante da inspiração. Segundo Elliot, a função do Poeta, do Prosador, enfim, do homem de letras, é articular o inarticulado, é curar o paralítico falar do povo, e para isto, o escriba tem de aprofundar, misturar-se e refletir a manada de tal forma, que se um estouro houver, este seja coordenado, laborioso e definitivo. Expandis-te tua consciência nacional, e com isso, tua rudeza iconoclasta tornou teu discurso agregado e poderoso, desaguando nesta escrita que vivifica, purifica e nos lembra desta guerra diária que o bicho humano trava por dignidade, sobrevivência e por uma mínima réstia de Sol, seja numa megalópole ou numa pequena província. Fala-nos dos ilimitados horizontes e das significativas distancias que existem nas mais variadas linguagens que nos unem e separam. Em ti, a síntese de várias gerações. És o arauto do homem solitário presente nos grandes aglomerados e nos mais abandonados rincões de nosso país, seja através de um jovem roqueiro apaixonado e suicida; de um corpo infantil decompondo-se numa manhã curitibana; de um migrante que torna-se um estranho para o filho ou de um idoso solitário que espera a morte admirando suas macieiras fenecidas ao som de jazz. Eclético? Não te define. Panfletista do belo? Autor-clipping? És mais. Em ti poesia, prosa, conto e crônica perdem suas fronteiras e coadunam-se, formatando um amalgama que nos alicia e conduz por textos que a primeira vista parecem independentes, mas que compõem um mosaico cujas partes em uníssono gritam a ampla finalidade da vida: o exercício fronteiriço do instante presente. Fábula vertiginosa mas real, drama que nos permite após dois mil anos de pandemia escatológica, defender que a razão é o caminho mais amplo e congruente para chegarmos à suprema compreensão deste mito que suplanta os deuses, que romanticamente em sonhos traduzimos no cosmos, no pulsar interno de um querer desmedido e que se manifesta nesta estabilidade imorredoura da paixão, totem ecumênico ao qual alcunhamos de Amor. Positivismo libertário e explícito, límpido na forma como inicias e concluis esta obra bradando dois apelativos e retumbantes sim! Então, sopre tua fulgurante trombeta e alardeie a vida nos lembrando urgentemente da resistente beleza, do espantoso exótico e das fecundas diferenças, pois que “extinctis luminibus”, passa a vida, chega à morte e a página empalidece.
Sinto em ti uma busca, uma vocação à transvaloração, vinda desta tua afinidade com a boa e velha escola da luta entre o fogo e o gelo; essencialmente Nietzsche: “Não somente as imagens agradáveis e alegres que experimenta em si com essa absoluta lucidez, mas também o severo, o sombrio, o triste, o sinistro, os obstáculos repentinos, as brincadeiras do acaso, as esferas angustiantes numa palavra...”; e Sartre: quanto à temporalidade das letras e dos homens. A meta de transposição para o além animal: o homem em plena perfeição e ao mesmo tempo passível do tempo, das internas anomalias e dos grandes colapsos. A investigação é o teu caminho de espantosos barrancos. Em ti o símbolo apolíneo busca um tratado, um mapa perdido, ou instrumentos de localização que apontem o horizonte onde paira esquecido o paraíso dionisíaco, suas orgias, ritos, cantos, celebrações e o exato e minucioso instante em que homem e natureza se completam, pois que, são do espírito os inúteis cerceamentos e as tempestuosas elucubrações; já o corpo, pulsa porque quer; ambiciona inconsciente o infinito e por ele entrega-se profundo, buscando realizar-se na plenitude da festa deleitosa dos sentidos. Daí tua fatídica profecia em relação ao fim das palavras. Pois em Baco, o mundo abandona o ideal de construção idealizada se entregando a casualidade do caos, enfim, quem de nós em meios às beberagens de bruxas manteria seu arbítrio límpido para escolha? Males da Pós-modernidade? Pré-destruição? Vivemos a era das ninfas e faunos sensuais, iletrados em busca de masoquismo psicológico, nas alegorias divinizadas dos produtos consumíveis; ignoram porém que a libertação está no exercício criativo da cognição, e que esta atinge seu ápice, conforme nos desapegamos das palavras enquanto monólitos rígidos e, percebemos que estas são como tua belíssima “Gota d’água”, emolientes, desgarradas, suscetíveis à redefinições e indefinidas transubstanciações. A totalidade das coisas sendo redesenhada conforme o universo se expande. O conjunto do que existe, em palavras que nascem, morrem e ressuscitam no árduo trabalho do escriba. Via Ápia que nos unifica. Talvez os últimos espias de uma estranha época, elos desta corrente que sobrevive há milênios e que defendemos com a vida por intermédio de uma escrita engajada e filantropa. (...)
Além de que, atiras com naturalidade dentro do erudito o que há de ‘fulgurante’ na cultura pop; o que te põe em meio aquele salto arriscado e corajoso, rumo ao que Clarisse Lispector declarou ser, o selvagem coração da vida. O novel descende do risco em misturar no crisol, o passado e o futuro. Retirando em meio à algaravia uma voz ordenada e retumbante. É desta forma que, levantas em teu texto variados estandartes que tombam novos e velhos mitos, ressuscitando outros e, da tradução destas velhas simbologias e alegorias acerca do imaginário e do real, condensas tua escrita numa espinha dorsal ascendente, telúrica e transcendental, que em busca de exatidão ecoa, ecoa e ecoa, sem nunca encontrar paradeiro, deixando uma vereda de palavras por onde seguimos atônitos, assustados e gozosos. “Obscurum per obscurius. Ignotum per ignotius: Mercúrio.” Compreender, segundo nosso amigo André Billy, é tão belo quanto cantar.
É neste rosário não litúrgico, que as palavras se concatenam, formalizam valor às coisas, idealizam sentimentos e instituem a introspecção: esta casa mata de onde, segundo o Roberto Piva, o poeta exerce o ofício de franco-atirador. Sendo esta a impressão que temos, quando escrutinamos o presente livro em fragmentos. Se considerarmos cada verso, poema ou prosa como uma obra isolada e independente do contexto geral, restam claras impressões de declarações terminais, panfletos apocalípticos, imagens rebuscadas ou um banquete irresistível, movediço e fatal. São cortes dialéticos, rasgos lingüísticos e uma tentativa tenaz de por fim a este cordão que nos liga aos primeiros primatas que ousaram aceitar em comum acordo, um símbolo ou um grunhido que nomeando formasse uma ponte sólida entre o objeto e a significância. Minerar a palavra primitiva. Gritá-la aos tiros. Explosões semânticas e a cada passo desta desordem quântica, uma dulcíssima exortação à esperança e a celebração da formosura. Daí os incontáveis Sim! Sim! Sim! que desabrocham por toda a escritura. Quando articulas equações salvadoras, continuas a querer desmontar o lego e fazer do castelo, do avião e do carro, um pássaro sem nome e de longas asas, para que possas empreender aquele longo e irreversível vôo do qual nos fala J.; Este rumo do qual viemos, nele estamos e seguiremos e que alça a grande questão que nos cerca: seguir sempre! Mas com que grau de consciência? Tua obra é um denso e metafórico manual de amor a esta introspecção. Um amor radical e romântico que nos remete por vezes a Novalis ou ao jovem Werther.
Devo te confidenciar uma coisa: estou mergulhado na elaboração de um estudo a cerca das influências da música negra americana e seus ritmos descendentes na formação dos jovens lusos e ibero-americanos; teu livro veio bem a calhar, pelo simples fato de escrutinar o pensamento, o sentimento e o semblante de toda uma geração dita perdida e encurralada da qual fazes parte. Ler-te me instigou a escrever muitas laudas, e ao mesmo tempo, proporcionou-me um número sem fim de abstrações, torvelinhos, lapsos e etc. Como diriam os mais jovens, trata-se de um livro para viajar e ser agulhado por suas referências e influências, já que em ti é a música que dita o rumo das palavras.
Fica a cada passo uma vontade doentia de reler todo um paideuma particular, que estabelecido em dualidade com tua obra, gera o convite a um cânone literário apropriadamente indicado para todas as idades. Uma procissão de referências convida-nos a relembrar sessenta anos de música ocidental, com seus representantes postados do jazz, blues, clássico, ‘popular’, rock e etc. Tudo isso numa retórica que remete por vezes aos fragmentos de Heráclito, outras aos ditirambos de Nietzsche, à orientalidade de Mishima ou a ocidentalidade de Ginsberg. Maleabilidade germinada nas primorosas metáforas, fecundos silogismos e surpreendentes comparações. A transmigração do infinito para o breve em pura música. Sim, meu caro, teu livro é para ser lido em voz alta, tal a plástica romântico-lírica, a harmonia e os tons melódicos nele dispostos. Queres estabelecer um definitivo acordo com o destino, uma trégua eterna com a morte e um rompimento peremptório com o que há de fraqueza nos mitos. E o fazes na pauta, em parceria com um metrônomo que certamente dita apenas o ritmo intermitente deste teu coração apaixonado por tua gente, e é claro, assoberbado por tua terra. Fenômeno lógico e explícito nos verdadeiros artistas: o orgulho das raízes. Tua amada província rapineira, cujas serras azuladas, me parece, gostarias de aconchegar envoltas nos braços.
Assim o é, caríssimo, surges com brilho no firmamento das letras. Tua poesia, prosa, crônica e conto são realmente para além de ti mesmo. Tua virtuosidade reside, em espelhar com naturalidade e destreza, um mundo belo e espetacular, onde gênese e apocalipse encontram síntese; impressão e expressão, se coadunam dando origem ao menestrel que incansável conta os temas heróicos de sua época, mesmo que esta tenha engavetado seguidas gerações e abortado via suas facetas reacionárias e trambiques políticos, incontáveis sonhos e projetos de vida. Entretanto, teus escritos desmontam a psique comum e por trás de tantas hecatombes e monturos, recrias a esperança aos sussurros e berros ecoando que, permanece intacta a profecia que divisa neste Pindorama a pedra de torque do devir, a última fronteira selvagem, a pressagiada Grécia adventícia e atlântica, que insurgirá resplandecente, esquecida de que um dia chegaram impiamente a amaldiçoar-lhe o destino e a classificar-lhe como sendo um grande, inescrupuloso e vil paquiderme. Sim! Sim! Sim! Nosso amado Brasil.
Saudades!!!
Saúdo-te!



Lisboa, 1 de julho 2008.

Stephen Z.Fly


















































Stephen Ziegland Fly, tem 55 anos é nascido na Suécia, filho de diplomata americano e mãe sueca, mudou-se para o Brasil com a família aos 7 anos. Proprietário de tripla cidadania (Suécia, EUA e Brasil), é casado com a escultora pernambucana Miracel Vizotto, reside atualmente em Portugal e define-se convictamente brasileiro. Formado em Letras pela USP é Doutorado pela Universidade de Coimbra. Desenvolve atividades como crítico, escritor, dramaturgo e Professor titular do Curso de Literatura Comparada Luso-Americana na Universidade de Coimbra. É autor de sucessos como “Manual do Covarde Vencedor” (romance); “Aquela Garota Chamada Roberto” (contos); “Modernidade, Mito ou Repetição?” (ensaios), entre outros.
A carta parcialmente transcrita acima, e os trechos epigrafados antes e após o capítulo 86, tiveram autorização expressa de publicação e foram gentilmente cedidos pelo autor e pela Loyd’s & Coimbra Representações, constituindo as únicas partes deste livro cuja reprodução é vetada.
































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