“Aqua permanens”
(...) E seja no ar fácil sorvida
como uma gota em outra gota de água (...)
Melhor dizer: como uma gota
de nada em outra de nada.
(João Cabral de Melo e Neto – em ‘Dois Parlamentos’ –
Morte e Vida Severina)
Nasci pequeno olho d’água.Tornei-me um pequenino córrego. De repente, ao caminhar distâncias, encontrei afluências pequenas e singelas como eu. Ciganas que a mim se juntaram e eu já não era um riacho. Fui ficando largo e caudaloso. Talvez um pouco obtuso e extenso. Tal o número de vozes que em minha corrente ondulavam. Desci montanhas, atravessei vales e já sentia no serpentear dos peixes, em suas difusas cores, a possibilidade do prazer definitivo: o estuário.
Então veio o gosto do sal. Uma intuição de infinidade. De coisas novas. Como se todo o caminho tivesse sido uma preparação. Inusitadamente, não sabia o que eras, mas já estavas em mim e me recebes-te agitado em águas quentes. Por dentro de ti fui correndo. Regozijando cardumes. Perdendo-me e reencontrando-me em seus variados dialetos, até não saber onde estava e o que era, e na próxima projeção já ser o todo pleno de silêncio. Para então numa tarde de Sol, dessas bem quentes, sentir o espírito pairar: Ver incontáveis arco-íris. Pequenas gotículas brilhando como sal, ou ouro, o Sol da terra. Aproximamo-nos. Unidas. Quebrando com cochichos o absoluto. Soprando umas nos ouvidos das outras sua própria história. Muito parecidas, mas de beleza ímpar. E neste turbilhão de palavras inauditas, nos abraçamos comprimidas e um som maior que todas nós eclodiu. Luzes nunca vistas se ascenderam enguias estriadas transpassaram os vapores. Pedaços ínfimos de nós por toda parte. Então, um pedido silencioso mirado entre os olhos do eterno. Condensação e queda. Já não era o mesmo e ainda assim, havia na pequena parte que restara uma lembrança nostálgica, precisa e inerente ao todo. Pura cosmogonia. Visceral necessidade de transmigração.
Despenquei as cegas. Não encontrei o olho d’água original , mas da terra extrai as impressões raras de absintos minerais: imemoriais. E com o gosto deles cheguei aos rios. Certo de que no fim, não havia fim. Apenas transformação. E toda a alegria que em mim gritava, provinha de um leve gosto de sal que convergia, envolvia e exultava; Em breve antes de conhecer alturas inexprimíveis, a visão de velhos galeões afundados, peixes miúdos e gigantescos traços raros e inesquecíveis. Tudo tão suspenso-impreciso, desnecessário: Somos teus ó mar. De tua imensidão e do aconchego dos teus braços. Mas somos da terra também. Somos do ar. Dos charcos. Montanhas. Rios. Habito o que em mim habita. Passo por ti como o mendigo que em tuas lavras enriquece, mas de somente olhá-las, pois de ti o que retira fica. E sai pairando, sonhando zombeteiro em reverter às impossibilidades de numa tarde de Sol, dessas bem quentes e desejosas.
Sorrir, sorrir e sorrir por sermos a desconhecida porém certa parcela integrante do definitivo dilúvio, que salvará da estéril normalidade o pouco do delicado que sobrevive em trapos e sem rumo, nestes febris e incertos corações dos homens. De judicioso, fica somente o infinito sonho pairando suave sobre uma simples e delicada, gota d’água.
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