p/ Sil Nascente & Noel Noturno e François Marie Arouet
Com sutil precisão a tarde extrai seu ritmo das coisas, esvaindo-se e acumulando nos olhos vestígios suspeitos, a rapidez das pessoas se contrapondo à lentidão das aves, e pra quem percebe isto: a dúvida não parte, o Sol vai longe e a noite não chega com seus milhões de furos perpetuando o distante. Cães e homens invisíveis. Obliquamente sumida a lua. As corujas passam ao largo. Noutro dia, vieram serem com seus capacetes plásticos, uns poucos brancos vociferando com alguns muitos azuis, caminhões, máquinas e a cada 40 metros , uma misteriosa linha de furos fundos & circulares. Vozes incessantes, latidos e mais latidos, a meninada em pândega e, sete dias. Sete derradeiras perfeitas noites e o fim.
Devia ter premunido quando viu inúmeros barbantes espessos em agigantados rolos. Paus de sebo de puro concreto, amarrados uns aos outros à distância. Pequenas bolhas vítreas que por algum misterioso motivo, até então, para nada serviam.
Sentiu cedo naquela segunda feira uma aflição desnorteante. Uma gastura no estomago, um pulsar equivocado do coração. ‘Aquele exército de monstros palitados’, o som da coruja ruflando indistinguível sobre eles. Mau agouro. Presságios. Suspirava, soluçava, tomava os remédios e nenhuma calma. Seis da manhã. Seis comprimidos. Almoço: virado de feijão com bacon, polenta frita e uma enorme xícara de café preto.
Estranha e silenciosa, apesar do forte vento, a tarde esparramou-se sem pipas. Onde estavam os meninos? Esticou a cabeça sobre o pequeno portão, o campinho da esquina sem bola. Nuvens itinerantes. Ares de outono no verão. Sentou-se no alpendre, na mesma cadeira em que esquecera qual a forma mais correta de calcular os anos, os dias. Houve época em que bolas e papagaios que caíssem em seu território, viravam pelotas e pandorgas mortas. Depois, faleceu Idalina, a esposa, e ele afrouxou. Passou então a devolver as raias e caroços que por ali caíssem e, antes de fazê-lo, admirava com certo ar de dignidade seu fabrico e disposição de cores. Depois, podia apreciar no céu, ao longe, sua aerodinâmica, força e quem sabe nas mãos de um guri mais corajoso, a belonave lambendo uma tempestade.
O lume amarelo já adulava o canto da boca do céu, quando livre de nuvens e ventos, o tampo desandou púrpuro, mergulhou em noite e o pulmão arfou. Atrasara o remédio? Não lembrava. Não forçava a vista para o relógio. Povo burro! Pagar para dividir o Sol em milhares de pequenos pedaços. Impossível! Povo bronco, eles iam ver! Atentou para a longa sombra do mundo. O coração em disparo. ‘Remédio velho! Boticário ladrão!’ Um segundo de silêncio. A cadeira. O balanço. Vai. Vem. Um pequeno disparo. O olho arguto. O clarão. Os olhos da coruja. Suas penas, que lindeza! Um momento. O ruflar das asas. Cadê o ruflar das asas? ‘Os paus de sebo! Malditos paus de sebo!’
Levantou resoluto. Fez a barba. Passou colônia, vestiu a melhor túnica e foi espancar os postes da recém instalada iluminação-pública, com sua visível fúria e risível bengala, homem como se julgava, lutaria até que a luz sumisse ou em terminal contraste com suas intenções, seu coração apagasse.
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