Pular para o conteúdo principal

Curto Circuito ou a Geometria Perfeita

Poesia & Prosa
  


Curto Circuito ou a Geometria Perfeita

p/ K. W. Jerusalém e S. Hawking

Os que se embrenham no matagal do saber
carregam a singularidade como sacrifício.”
(Donaldo Schuler – em “Heráclito e seu Dis-Curso”)


Se morro eu, você verá o cessar abrupto. Este não mais sentidos ou aquele nenhum pensamento. Nadificado nado no infinito tudo. Porém, ah deus meu! deus meu! E se morre você? Falece-me a sorte. Empalidecem os tecidos e sussurram os ventos: morto, morto, morto...”
Um resignado e exótico zumbi encurralado. Em abandono qualquer percepção estética. Aniquilado figurante de um minúsculo curta-metragem. Tragédia pontual asfixiada por voragens. Prenúncio de ganidos. Um certo aroma só antevisto em sonhos. A ânsia por despertar em meio a fluição em redemoinho. Em meio à correnteza eu: torto, torto, torto; Por que mordo a mão do adestrador? Simples, desprezo a guia e renego a forca.
Estive, se é que posso contabilizar, a cerca de três minutos atrás, em frente à ruína da antiga bicicletaria, ali próximo ao cemitério municipal, carburando ‘um’ com o “Pixote”, silenciosos como sempre, cônscios de nossas diferenças e galáxias que nos separam, baforamos no bom e velho respeito. Póstuma a pajelança, despedi-me, subi na bicicleta e dei rumo ao curso caseiro. Montanhas ao fundo, curva, ‘Marlene’s Bar na esquina’ e logo em frente à direita, a ‘Capela Mortuária’. Ao passar frente ao pórtico ouvi nitidamente um uivo. Havia uma coroa de flores e um velório. Ignorei cerca de três dezenas de pessoas. Apenas a coroa me atraía. Rosas do mais fundo vermelho com uma faixa branca atravessando o halo. Tive desde o primeiro momento a indubitável impressão de que, mesmo de longe, eram os nossos nomes que lá estavam impressos na transversal. Encostei a bike no meio-fio, apressei o passo e pus-me diante da coroa, onde li a palavra ‘geodésica-infinito’. Senti uma enorme opressão no peito. Vislumbrei um dos paradoxos de Zenão e compadeci-me de Aquiles por sua equacional derrota para um jabuti. Sim, homem de ferro de Itabira, infinitos homens habitam nossos sapatos. É através do silêncio que percebemos a pequenez de nossa história. Estou surdo e aturdido. Por forças que julgo não serem minhas, caminhei até a porta da funérea câmara, um rápido olhar para dentro e, não atraiu-me saber que decompunha-se nem o conteúdo das lastimas dos que ali choravam. Ao lado da entrada dois castiçais e um suporte para o livro dos presentes. Quis encerrar aquela agonia. Apanhei a caneta ao lado do compêndio, curvei-me até este abrindo-lhe a capa, deixaria meu nome ali em homenagem as rosas vermelhas e partiria. Deitada a miopia a um palmo das linhas, percebi que o conteúdo compunha-se não de nomes mas de uma única folha cujas páginas já estavam totalmente preenchidas. Inicialmente supus ser hebraico, depois, forçando a vista, pude notar ser inteligível a escrita. Algo como um fado, um bolero ou quem sabe uma milonga, difícil dizer posto que ao completar a leitura da segunda linha, e ao chegar à segunda “aspas”, voltei a ouvir imediatamente o ganido de um cão, enxerguei a coroa de rosas, tive a impressão de serem nossos nomes lá inscritos, não pude resistir a vontade de averiguar, encostei novamente a bicicleta no meio-fio, atravessei a rua, escrutinei a faixa mortuária, curvei-me ante ao livre dos presentes já com a caneta nas mãos e reiniciei a leitura do texto. Ao chegar na terceira linha e segunda aspas, vocês já sabem. Como num pesadelo ou piada de mau gosto o evento se repetia. Concentrei-me num modo de quebrar o ciclo. Pensei em não pegar a caneta, mas feito isto, de imediato ela apareceu-me nas mãos. E agora, se tento largá-la, volto ouvir o cão e retomo o caminho até o momento em que surge tal idéia, então posso seguir até o ponto exato do texto em que tudo se reinicia ou, fazer uso de artifícios como por exemplo, tentar não ouvir o uivo, levar as mãos aos ouvidos, cair da bicicleta, pensar em não ouvir o uivo, levar as mãos aos ouvidos, cair da bicicleta... e só interromper o novo ciclo indo até seu ponto máximo, ou seja , as primeiras três linhas até a segunda aspas. Depois, desisti de encontrar a fuga no meio do caminho e pus-me a enumerar todos os elementos presentes na cena, vivos ou não, dos humanos à arquitetura da rua, do prédio ao número de paralelepípedos, da disposição das nuvens às orações e choro dos presentes, a indumentária de todos, as placas dos carros visíveis, o numero de rosas na coroa, a quantidade de pássaros cantando, de raios em minha bicicleta e etc. Tudo pormenorizado e nada. Decorei todo o texto das três linhas e passei a recitá-lo em voz alta, mas ninguém me ouve. Tento pressentir o odor que deveria vir nauseabundo de dentro da Câmara, mas não há cheiro. Cheguei a pensar em adentrar o recinto mas, fico com a impressão de que no máximo vou aumentar o desagradável embuste e talvez, consiga somente vislumbrar terribilidades mortiças pela eternidade. Agora a pouco, percebi de forma inédita, uma apagada inscrição na capa do livro dos presentes dizendo: ‘destino’. No entanto, sabê-la não mudou o curso. Estou pronto, submeto-me. e sucumbo com zelo. Em algum ponto entre o uivo de um cão e a segunda aspas, estou eu, agora, convicto que neste pequeno intervalo de tempo cabe o infinito, basta amá-lo e entregar-se a ele. Passarei a eternidade a auferi-lo sem oxidar. Quanto ao conteúdo do texto, de tanto dizê-lo, já estou a musicar-lhe numa mistura de fado e bolero que por vezes soa uma milonga que diz:
Se morro eu, você verá o cessar abrupto. Este não mais sentidos ou aquele nenhum pensamento. Nadificado nado no infinito tudo. Porém, ah deus meu! deus meu! E, se morre você? Falece-me a sorte. Empalidecem os tecidos e sussurram os ventos: morto, morto, morto...”


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Uma Pequena Canção de Repúdio a Demora e ao Silêncio (só mais uma ode a liberdade)

Uma Pequena Canção de Repúdio a Demora e ao Silêncio (só mais uma ode a liberdade) ... olhem, a morte descortinou-se de vez: foi no dia em que eles mataram a liberdade e nós ficamos aqui calados este nosso silêncio foi um dedo no gatilho em meio ao Sol despedaçado foram tantas as imagens que chegaram neste dia escurecido que nossos olhos estão cegos de vergonha pois restamos aqui parados nosso espírito indigente colocou-nos aqui tão vis, tão juntos e vencidos que assistimos a vida agonizando com a menina ali ao lado vendo as forças que se alimentam dos seres livres impondo um outro (e)Estado assustada neste dia, em que juntos assassinamos a liberdade momento em que nossa servidão e  morte descortinaram-se de vez... "Pois que a vida e a liberdade devem ser antes de tudo, a essência mais profunda que há dentr...

Sobre Corações Maciços (Poema Espelho)

"Se alguém chegasse à minha despretenciosa cabana, teria lhe oferecido as boas vindas com uma recepção tão suntuosa quanto um homem pobre pode oferecer." (Thomas De Quincey - em 'Confissões de um Comedor de Ópio'). Sobre Corações Maciços (Poema Espelho) Para Thiago Jugler &Isabela Socrepa, Iko Vedovelli & Evelim ...construir pedaço a pedaço num coração em cores e tijolos vermelhos incandescentes brilhantes brilhantes incandescentes vermelhos tijolos em cores num coração pedaço a pedaço construir...

No Visions of Cody

No Visions of Cody p/  Jack London, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs, Hal Chase, Neal Cassidy, Timothy Leary, Ken Kesey, Thomas De Quincey e etc. (…) “desaparecer não é para qualquer um, só você, misto de mistério e dúvida pode estar em lugar nenhum e ainda me tocar por música.” (Marcos Prado – em ‘Begônias Silvestres’) I Feito em pedaços variados, ombros curvados e passos amolecidos, sob a sombra de um puído chapéu, andar isolado, enfebrecido e amargamente hipnotizado pela noite.  Nos olhos fundos. Na dor da alma: a tez marcada, a sola gasta, os pés molhados e o pisar em pedras carecendo de um arquitetado rumo. Quem mora dentro da tempestade? O cheiro de cedros e eucaliptos? Raios colossais já não despencam em matas virgens. À noite emparedada no horizonte ruge. É sempre bom caminhar em direção à chuva. E dentro de alguém que não esteja louco: há muita conversa. Por vezes ventos dentro da gente. Não é mister precisar pra onde levam, mas é sempre mais atrat...