Mandrágoras Roxas Frias
“Prisioneiros, Degredados sodomitas, Heréticos, Piratas. Este país nasceu da Anarquia. Tivemos todas as oportunidades para viver o matriarcado de Pindorama, sua Poesia e seu mito. Entregamos nossa liberdade nas mãos eunucas da igreja católica. Dos acadêmicos e dos esquerdistas de pau pequeno.”
(Roberto Piva – em ‘Mairiporã 90’)
Sem pressa o Sol cresce em meio a uma manhã de junho. Amenas. As longas sombras projetadas pelos edifícios vão se recolhendo enquanto o calor crescente libera uma bruma cinza e sinistra rente ao asfalto. As mandrágoras murcham no parapeito do edifício em frente e, o consciente coletivo permanece infértil. Apressadas, as pessoas passam em busca de seus afazeres diários. Encasacadas. Recolhidas por trás de suas feições sisudas. Os desempregados feitos moscas, circundam as bancas de jornais à procura de manchetes frescas gratuitas, e por que não dizer, a espera de melhores dias. Na primeira página de um jornal de grande circulação vejo a seguinte manchete: ‘Filho do Mega-Empresário Paulo César Rachid é Morto em Seqüestro, Assassino é Ex-policial. ’ Leio o artigo sem zelo e pouca curiosidade. Segundo o texto, certo Pellegrino, ex-investigador da civil, expulso por comandar um grupo de extermínio de menores infratores, foi autor físico e intelectual do seqüestro. A vítima, um menino prodígio de onze anos, campeão pan-americano de xadrez nível adulto, foi raptado na saída da escola privada que freqüentava, sob a conivência de seus seguranças particulares. Como resgate foi pedido meio milhão de Reais, preço que o pai, dono de uma das maiores redes de supermercados do país, declarou ser inviável pagar. Nada estranho para um sujeito que responde diversos processos por corrupção ativa, formação de quadrilha além de ser conhecidíssimo por bancar parte das campanhas de vários políticos duvidosos. Ainda assim, a notícia contaminaria a mídia por muitos dias. Fecho o jornal e permaneço a espera da polícia. E assim fico durante toda manhã. Quando os leitões chegam, já passa do meio dia, o astro rei se encontra no prumo na abóbada, descongelando lentamente o cadáver de uma menina do outro lado da rua coberto por jornais. Lábios e dedos arroxeados. Olhos gélidos que não miram mais. Não saberemos quem é ela. Solitária como deve ter sido a sua breve vida. Menor de rua. Criança nunca amada. Sangue escurecido na nuca. O que posso fazer? Sou apenas uma senhora adoentada, a Zoraide dona da banca da esquina, falsária do carteado e do tarô, com anúncio em jornal e tudo, insensível assistindo a tudo monotonamente para sobreviver. Aguardando sempre ansiosa por mais novidades e pela abertura de mais uma caixa de bombons. Quatorze drágeas. Gorda esparramada. Eliminando com prazeres exageradamente obscenos a continuidade da memória. Notícias silenciosas, mas tangíveis a respeito de pequenos viciados e famintos indigentes que ainda agora estão ás margens de nossa indignação. Sombras abstratas personificando histórias que direta ou indiretamente escrevemos, e por mais que penetremos em seus absurdos, estaremos sempre distantes de equacioná-las. Então fica a noite que nasce envolta por verídicas ficções. Personagens sem profundidade. Impenetráveis. Vazios. Insistindo neste eterno confronto obrigatório a quem está vivo: esta estrada descontrolada até a morte ou um encontro sucinto com o escatológico, com mitos e lendas que nos redimam desta culpa concreta e sem palavras, advinda de nossa passagem ligeira e assassina, de nossos olhares cegos e vertiginosos, sem a exata leitura, execrando com sutil ignorância uma pobre menina podre, destas que estragam com absolutas pequenas tragédias biográficas, as gélidas estatísticas destas jamais pacatas manhãs de junho.
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