A Relação Entre as Palavras Enovelar e
Desenrolar com a Estruturação de Um Enredo
Desenrolar com a Estruturação de Um Enredo
P/ S. Bylight
...Aí Janaína perguntou “como é que vai
terminar o livro, meu tio?”
terminar o livro, meu tio?”
(Jorge Amado – em Literatura Comentada)
I
A palavra enredar a exemplo de enovelar, significa um emaranhar, intrigar, armar enredo...
Enovelar e enredar contrariam o conteúdo semântico de desenrolar, que segundo o mestre Aurélio significa desdobrar-se, desenroscar-se, verter, desembrulhar, desenvolver, estender...
Tomemos aquela tarde de maio em Salvador como exemplo: Jorge sai na sacada e admira
o pelourinho. Caminha no tempo até a água-furtada. 27. Ratos aos borbotões pelas
escadas. ‘Suor’. Botecos para os de pouca grana. Um sempre disponível saveiro e alhures
um amigo pescador. Cachoeira. Porto Seguro. Valença. Maraú: ‘Agradável e admirável
vida livre’. Lapsos de Auricídia. Ferradas. Itabuna. Parece um pouco cansado o último dos
doze Obás. Pensa em Caribé, Mirinha do Portão, Joãozinho da Goméia, Procópio e Menininha.
Um enterro Nagô pra Aninha. 38. Pedra Preta e uma ramificada ‘tenda de milagres’.
Remonta à velha Ilhéus e com a leveza de uma pequenina pena de pombo lhe chega um canto.
Caetano harmoniza ao fundo o entardecer insone. São ‘As Terras do Sem Fim’. Ele tamborila
o parapeito com sutil repetir de dedos. Enternece-se. Axé Opô Afonjá Atenta:
“...você diz a verdade, a verdade é o seu dom de iludir...”
O pequeno curta-metragem naquele momento era dele, o homem dos filmes bravios
e das inumeráveis traduções. O verdadeiro Mago dos demasiados sonhares. Dos lugares
marcantes e incidentes. Bahia. 12. Onde estaria Zélia? Anarquizando ou cuidando do jantar
graças a deus? Quem sabe calma na compreensão harmoniosa que somente o tempo
com suas irreversibilidades é capaz de trazer. Passam alguns integrantes do Olodum batendo
deliciosos tambores. Ficam as nádegas da morena carnuda no olhar do mestre. Um pequeno
lampejo num piscar de olhos. Um mínimo inferno astral. A face de Raquel de Queiroz no dia
em que balas lamberam o tombadilho. Ambos estacados. Muita bravura para os ‘cadernos de
um aprendiz’. Um personagem truncado: o tal armandinho do Recife, freqüentador assíduo do
beco de Maria Paz , e que, por crueza e querença do mau destino, matara Lina por motivos de cornos. Camarada das noites, dos bares
e das putas. Um belo infante que não fazia-se rogado nem com as mais idosas ou obesas. Como dizia o Jão: êta cabra pra furdunçá num toucinho.
Bom larápio. Freqüentador das docas. Do Píer. Era inteiriço do cais. Puro trapiche. Tinha
as meretrizes como deusas e os camaradas como irmãos. Enunciava orgulhosas vinte doenças
venéreas.
Por honroso motivo de marafo e um décimo de zig-zag, deixou de presenciar o funeral
marítimo de Quincas, o querido Berro Dágua.
Ser antológico. E, ainda assim, era preciso
trancafiar ou dar corretivo ao sujeito. Os adjetivos que Jorge escolhia lhe eram ingratos e no entanto, sempre que
punha os tipos a bater contra o papel, insurgia um personagem ou um figurante qualquer pedindo:
_Por favor! Olhai por Armandinho! Não faz aquele jeito por mal.
A trama enovelava-se. Deuses não deviam apegar-se as suas criaturas. Como desemaranhar
o novelo? Era quase uma queima privada de queridos arquivos. ‘Rui Barbosa Número Dois’.
II
Troco o disco de lado. Lá vem Caetano:
“...derrama o leite bom na minha cara e o mau na cara dos caretas...”
Queria entregar-te intrincada trama, mas pouco entendi do enunciado. O que significa?
O que pede? Quantas dúvidas, meu pai! Olhos mareados esperados há tanto tempo que
esquecidos foram os azuis. “...construir-nos dulcíssima prisão, encontrar a mais justa
adequação, tudo métrica e rima e nunca dor...” Roda “Quereres” envolto em espessa
fumaça. O vinil espirala. Chega o anjo com o bafejo do cansaço, uma ninfa delicada me apanha
nos braços, quero dormir, mas não posso.
Queria estar a tomar chope tranquilamente abrupto levantar-me e sofregamente ir até o Rio
Vermelho. 63. Jorge surpreendido com as palmas me receberia amável, mas sutilmente
desconfiado. Perplexo, me convidaria para entrar. Falaríamos de trivialidades literárias e riríamos
muito a respeito desta bahianização do mundo. Ele contar-me-ia em primeira mão sobre o cancelamento do projeto do emaranhado livro, o que punha Armandinho num infindável grau de liberdade: o bom vivant desenovelara-se da trama. Jorge preferiu que os fantasmas da dúvida vagassem para sempre na certeza de que não careciam mais de certezas.
Na semana seguinte, Jorge e Zélia foram vistos em Paris, naquele mesmo café em que Hemingway e Fitzgerald se esbaldavam enquanto a cidade luz ainda era uma festa.
Eu fiquei aqui. Feira de domingo. Largo da Ordem. Na baba do cavalo. Ali onde polacas rotundas em outras eras davam de beber a sua animália. Um chopinho no Saci ou no Alemão e a vida foi indo.
Anos se passaram e eu nunca mais sonhei com os dois. Na verdade, hoje aconteceu de eu ter
duvidado dessas memórias, o que me deixou facilmente enrolado num fractal de desmedidas palavras. Enovelar. Desenrolar.
A névoa esverdeada cessou. O disco acabou. Sinto um lépido arranhão no pé. A gata desfia minha meia fazendo um micro novelo e deixando meus pés a mostra, por meio de um avantajado buraco. Continuo olhando para a estante. Nenhum livro me assalta. Nasce o pensamento de levantar-me e chegar até ‘Os Condenados’ ou até ‘A Bagaceira’, mas a pobre idéia já nasce fadada à vida curta. John dos Passos. Faulkner. Caldwell. Steinbeck. Ilya Ehrenburg: ‘Júlio Jurenito’, ‘Os Três Cachimbos’. Nada. Nem um movimento. Um momento vazio e os pensamentos eclodem em outro canto, desdobram-se ao encontro de outros enredos e revisitados personagens. Despedida de uma empreitada lenta, pois que a vida é demasiado curta. O tempo urge, chacais e donzelas cercam-se lá fora. Tiro as meias desfiadas. Ouço “Baby i’m Gonna Leave You”. Um blues rasgando o coração da tarde. Na mente impresso dois mareados ácidos azuis do meio dia. A vida pulsa lá fora. Ainda há bosques e florestas. Por que não metaforiza-los? Por quê? Para que nunca se extingam, vicejem e possam ser reescritos, garantindo assim numa futura aula de biologia a manutenção da possibilidade viva de que surjam em indistintas matérias, estranhos exercícios de interpretação.
Bem no fundo, queria é ter abraçado Jorge, Zélia, Caribé, Cainmy, Vandré, Tom, Vinicius, Baden, Bandeira, Drumond...
Agora, dêem-me licença. O Sol se põe, os trabalhadores abandonam as fábricas, o comércio se agita, as crianças retornam ruidosas e por um momento a sinfonia é festiva pelas ruas. Das casas chegam ao passeio público à miscelânea adorável dos jantares sendo prontos, os alhos, os feijões, arrozes e alguma carne. Deglutidos ao som do jornal e digeridos sob a luz da novela. Depois, só latidos, uivos e o leve pestanejar dos fantasmas. Quatro semáforos, que um dia não impediram um grupo de vacas, agora servem de arabesco solitário ao silvo do vento. Em toda província existe toda uma procissão na noite, e nós provincianos adoradores de ficção, somos farsantes enovelados. Nunca nos desenrolaremos dos mitos que nós mesmos criamos e nem nos perdoaremos quando tivermos jogado a última pá de cal sobre o túmulo dos humildes sonhos e altruístas ilusões. Subimos a montanha para ver a cidade grande iluminando uma extensa linha no horizonte ao longe. Um grande dragão avançando sobre geográficos espaços vazios. Enegrecendo a respiração dos homens e endurecendo todos os corações amargurados.
Olhai para os recantos distantes e onde houver uma planície com um córrego e um sólido terreno, construí. Bem no meio desta, erguei um mirante alto o suficiente para que visualizes cem por cento todo o perímetro. Armeis-te sem remorso. E quando sem aviso te acercarem, atirai, atirai e atirai. Até que nada se mova em tua esplanada e teu fatigado coração descanse deste intrincado enterro de ilusões.
Então o novelo será uma linha ligando dois pontos do infinito. Tudo solto. Livre. Axé. Desemaranhado como deve ser o término alvo de destino de qualquer espírito de coragem e de toda alma aguerrida. Axé. Já não vivemos mais os tempos do Rio Vermelho, mas de rios negros e natura morta. Mas resta a esperança: e pra cada lampejo desta, um ruflar de asas: Axé. Axé. Axé.
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