A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROPRIEDADE, O SURGIMENTO DE SUA FUNÇÃO SOCIAL E A USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL ENQUANTO PROPULSORA DO CONTEÚDO EXISTENCIAL MÍNIMO
A EVOLUÇÃO
HISTÓRICA DA PROPRIEDADE,
O
SURGIMENTO DE SUA FUNÇÃO SOCIAL
E A
USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL ENQUANTO PROPULSORA DO CONTEÚDO EXISTENCIAL MÍNIMO
Para Suzete Zaira dos Santos, querida esposa e
mãe. Em memória de Jimmy Harris Hendrix Estefani, Filho que vi e se foi. Bem
como, em memória daqueles Filhos que se foram, sem que eu pudesse vê-los: meu
coração é vossa casa.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a minha mãe, que mesmo sem saber,
estabeleceu o contraponto exato do que eu quero ser. A meu Pai, que conseguiu
me fazer crer, que um comportamento honrado e ético não é somente uma utopia. A
minha esposa pela dedicação, amor, paciência e garrafas e mais garrafas de café
servidos pelas madrugadas de pesquisa e escrita. A Rute Estefani, pelo carinho
e benvindas ajudas. A Telles Ailton: herói, bombeiro e amigo nas horas mais
difíceis. A Lucas Estefani, uma das pessoas mais honestas, verdadeiras e dignas
que conheço, sem o qual, meus pés teriam sofrido, tão mais neste árduo caminho.
A Raquel Estefani, que abdicou de sua adolescência, para ser mãe dos irmãos.
Aos programas de inclusão social, que permitiram que pessoas de minha classe
social, adentrassem à Academia. Aos contribuintes, que nortearam sem saber,
este meu compromisso e atitude séria com a aprendizagem. Ao meu neto, Carlos
Eduardo (Kadu), com a promessa de que compensaremos toda a distância destes
meses. Agradeço também, enormemente, ao nobilíssimo Professor Francisco José
Barbosa Nobre, cujo Manual da Usucapião Extrajudicial, me enviada ainda quente
do prelo, possibilitou as referências doutrinárias, para indispensáveis
capítulos deste trabalho, além do respeito e amizade demonstrada. E finalmente,
a minha orientadora Profa. Maria Cecília Naréssi Munhoz Alffornalli, autoridade
em direito de imagem, de quem muito me orgulho, pelo apoio e crença na
qualidade deste texto, escrito com o rigor da pesquisa científica, mas sem
abandonar o ritmo lírico e apaixonado da literatura.
Se eu tivesse que responder à seguinte
pergunta: O que é escravatura? E respondesse sem hesitar: é o assassínio, o meu
pensamento ficaria perfeitamente expresso. Porque então esta outra pergunta: o
que é propriedade? Não posso responder simplesmente: é o roubo; ficando com a
certeza que me entendem, embora esta segunda proposição, não seja mais que a
primeira, transformada?
Pierre Joseph Prouhon – O que é a Propriedade?
Uma elite de sonhadores quis fazer a golpes de
tinta e no lance fugidio do relâmpago, que um povo saído dos horrores da
escravidão e analfabeto compreendesse a liberdade dentro da ordem e
constituísse o país do progresso e das grandes luzes. O sonho acabou num
acordar macabro: os autores dos ideais generosos, ou presos nas algemas
inquebrantáveis da indiferença pública, ou lançados nos altares do civismo para
não estorvarem as hienas no trabalho de refocilo sobre as carnes da pátria que
não sabem amar!
Cel. David Carneiro – O Paraná e a Revolução
Federalista.
RESUMO
Este trabalho, tem por
objetivo discorrer o surgimento e a evolução da posse e da propriedade, desde a
mera ocupação e uso do solo oriundo da revolução agrícola, passando pela
antiguidade grega e seu antropocentrismo, pelo Império romano e suas
codificações. A invenção da usucapião. O feudalismo. As revoluções inglesas:
Puritana e Gloriosa. Os germes do liberalismo, iluminismo e revolução francesa.
O surgimento da burguesia. Os comuns franceses. A mãe de todas as revoluções. A
ascensão burguesa. Os camponeses traídos. O código civil de Napoleão. A
absolutização da propriedade. O ingresso dos ideais iluministas na história brasileira.
O Brasil Colônia e as Ordenações do Reino. A ocupação por meio de sesmarias. O
Brasil Império e o poder político da aristocracia rural. A Constituição
Imperial. Escravidão e crise agrária. A queda de um Imperador. O Registro do
Vigário. A constituição da República. O Código Civil de 1916. A
Carta Cidadã de 1988. O surgimento e a sedimentação em nosso ordenamento da
função social da propriedade. O Conteúdo existencial mínimo. O princípio da
dignidade da pessoa humana no que concerne à moradia. A desjudiciarização
enquanto fenômeno jurisdicional e seus reflexos sobre a usucapião. A Usucapião
administrativa, marco da relativização do direito de propriedade. A era Lula e
seus reflexos para a posse e a propriedade. A Lei 11.977 de 2009, o embrião da
usucapião extrajudicial. Sem a necessidade de uma revolução: o encontro “glorioso”
dos governantes brasileiros, com o Império da Lei. A Senhora Dilma Rousseff,
presidenta de um país dividido. As Pedaladas fiscais. O fim de um projeto
populista e seu custo para a nação. Michel Temer, um governo suspeito,
impopular e em crise: transitório e reformador? Uma leitura dos Artigos 1.071
do Código de Processo Civil e artigo 216-A da Lei de Registros Públicos. Os óbices
a concretização da usucapião extrajudicial e sua solução. A Lei do Puxadinho.
Reurb: um novo paradigma normativo para o ordenamento e ocupação urbana.
Palavras-chave: Posse. Propriedade. Desjudicialização. Usucapião
administrativa. Reurb.
RESUMEN
Este
trabajo, tiene por objetivo discurrir el surgimiento y la evolución de la
posesión y de la propiedad, desde la mera ocupación y uso del suelo oriundo de
la revolución agrícola, pasando por la antigüedad griega y su antropocentrismo,
por el Imperio romano y sus codificaciones. La invención de la usucapión. El
feudalismo. Las revoluciones inglesas: Puritana y Gloriosa. Los gérmenes del
liberalismo, la iluminación y la revolución francesa. El surgimiento de la
burguesía. Los comunes franceses. La madre de todas las revoluciones. La
ascensión burguesa. Los campesinos traicionados. El código civil de Napoleón.
La absolutización de la propiedad. El ingreso de los ideales iluministas en la
historia brasileña. El Brasil Colonia y las Ordenaciones del Reino. La ocupación
por medio de sesmarias. Brasil Imperio y el poder político de la aristocracia
rural. La Constitución Imperial. Esclavitud y crisis agrarias. La caída de un
emperador. El Registro del Vicario. La constitución de la República. El Código
Civil de 1916. La Carta Ciudadana de 1988. El surgimiento y la sedimentación en
nuestro ordenamiento de la función social de la propiedad. El contenido
existencial mínimo. El principio de la dignidad de la persona humana en lo que
concierne a la vivienda. La des judicialización como fenómeno jurisdiccional y
sus reflejos sobre la usucapión. La Usucapión administrativa, marco de la
relativización del derecho de propiedad. La era Lula y sus reflejos para la
posesión y la propiedad. La Ley 11.977 de 2009, el embrión de la usucapión
extrajudicial. Sin la necesidad de una revolución: el encuentro
"glorioso" de los gobernantes brasileños, con el Imperio de la Ley.
La Señora Dilma Rousseff, presidenta de un país dividido. Las Pedaladas
fiscales. El fin de un proyecto populista y su costo para la nación. Michel
Temer, un gobierno sospechoso, impopular y en crisis: ¿transitorio y
reformador? Una lectura de los Artículos 1.071 del Código de Proceso Civil y
artículo 216 A de la Ley de Registros Públicos. Los óbices la concreción de la
usucapión extrajudicial y su solución. La Ley del Puxadinho. Reurb: un nuevo
paradigma.
Palabras clave: Posesión. Propiedad. Des
judicialización. Usucapión administrativa. Reurb.
INTRODUÇÃO
Não
há como pensar em moradia, sem a sinapse imediata da ideia de domínio sobre um
pedaço de solo, e sua consecutiva utilização para proteção da família.
Ilustra-nos habilmente Eduardo Agostinho Arruda AUGUSTO, ao afirmar que: “A
terra é essencial para a vida, pois é o local onde se fixa o povo e de onde se
extraem os meios de subsistência. A casa própria é um dos maiores desejos da
atualidade, pois representa conforto, segurança e dignidade. ”[1]
Deriva
daí a sacralidade da ideia de propriedade, que é tão antiga quanto à fixação do
homem no solo. Pois quando do abandono do nomadismo coletor e adoção dos
primeiros modelos agrários de plantio, nossa espécie viu-se diante de uma
encruzilhada histórica, onde o preço da segurança alimentar forçou a uma
valoração extrema daqueles espaços tidos como férteis, de maneira que
rapidamente se ergueram fortificações defensivas e os homens uniram forças se
organizando em clãs, tribos, povos e nações, sempre com o intuito de manter e
se possível aumentar seu território e áreas de plantio. Com o início, das
grandes fortificações, palácios, templos e canais de irrigação, em meio aos aglomeros
humanos ancestrais, surgiram os primeiros conhecimentos técnicos específicos.
Estes, durante muito tempo, foram perpetuados pelas primeiras formas de escrita,
que por longuíssimo tempo, cumpriram o mero papel de um código que, apesar de
público e corrente, era acessível somente a alguns privilegiados.[2]
Tudo
o que somos enquanto indivíduos, e representamos na forma de coletividade, descende da evolução das relações que
as sociedades que nos precederam, tinham com a posse e a propriedade. De modo,
que ao admitirmos nossa descendência de um modelo histórico cultural
grego-judaico-cristão, assumimos enquanto nossos os ideais e paradigmas, que se
sustentaram o ocidente através da história, propiciando o surgimento do pensamento
liberal e estruturando o monopólio moderno do sistema capitalista, onde a
propriedade de imóveis transcendeu de tal forma a mera necessidade humana por
moradia, que se tornou alvo de especulações financeiras, fazendo com que alguns
Estados modernos, se vissem envoltos em crises de grande vulto, que se
ancoraram na especulação imobiliária, terminando por causar danos a toda
economia global: foram as chamadas “bolhas imobiliárias”.[3]
As crises relativas ao uso e
exploração da terra, estiveram ligadas, por muito tempo em nosso país, às
questões agrárias. Desde o início de nossa colonização, a terra ocupou o centro
de nosso modelo econômico, das Capitanias Hereditárias até o fim do Estado
Novo, fomos um país exportador de monocultura agrária. Primeiro de cana de
açúcar, depois a borracha e mais recentemente, o café. Pouco mudaria neste
contexto até a chegada das primeiras fábricas.[4]
Somente
com o advento da revolução industrial, se fortaleceram as propriedades
comerciais e fabris (urbanização) e no seu entorno núcleos de moradias
inicialmente voltadas àqueles que migravam das áreas rurais (êxodo rural) e que
viriam a compor a mão de obra propulsora das primeiras fábricas, ocasionando
uma forma inédita de fracionamento do solo, na qual um número cada vez maior de
pessoas saiu do seu habitat de origem, passando a se concentrar em pontos
específicos devido à necessidade de moradia e trabalho, ocasionando em ambos os
ambientes o convívio cada vez maior de um número elevado de pessoas reduzidas a
espaços mínimos. No dia respeito ao campo, com a diminuição da população e
aumento da demanda por gêneros alimentícios, oriunda das cidades que se
formavam, o pequeno produtor passou por significativa melhora.[5]
Por força da necessidade humana, em especial
sua capacidade de multiplicar-se geometricamente, estes espaços geográficos
alçaram o status de valiosos bens, não por acaso, o chamado liberalismo
econômico eclodido dos ideais da Revolução Francesa e que fundou o capitalismo,
tinha como um de seus fundamentos pétreos, uma visão arcaica da propriedade,
defendendo que a transmissão da titularidade desta deveria dar-se somente por justo
título, ou seja, a vontade manifesta do proprietário e detentor de título
oficial e público seja por doação, alienação ou no caso de falecimento em
decorrência do inventario, testamento e consecutiva partilha, numa visão quase
que absolutista do direito de propriedade. Durante muito tempo foi este o
modelo que imperou em todo o ocidente, inclusive no Brasil, onde a exigência de
justo título é resquício do liberalismo econômico, sendo que esta visão
clássica somente foi legalmente corrigida com a Carta Magna de 1988, também
denominada Constituição cidadã.[6]
Ocorre que a fragmentação,
pressa e informalidade, características destes dias tidos como pós-modernos,
somados a herança portuguesa do hábito de transmissão informal da posse,
domínio e propriedade, fizeram com que a as leis que regem o direito
imobiliário atual, no que tange a obrigatoriedade de escrituração e registro,
pusessem uma imensa quantidade de imóveis urbanos e rurais para fora do universo
legal de transmissão, ficando estes por décadas sem a proteção eficaz que
somente o registro legal traz, seja por que o real proprietário, há muitos
anos, fracionou e vendeu por instrumento particular área sua, sem aprovação do
órgão público responsável para o projeto, ou por que titulares de mera posse
transmitiram de um posseiro para outro durante longo tempo o imóvel por mero
contrato verbal ou particular, ou, mesmo quando terceiros de má fé alienam
frações de imóveis dos quais não possuem posse ou propriedade, devido ao fato
de o saberem abandonados a muitíssimo tempo, ocorrendo em todos os casos,
destes imóveis jamais serem reivindicados pelos detentores dos títulos
registrais, sendo que em todos estes casos, raramente estes documentos particulares
de transmissão resistem ao tempo.
É dentro desta realidade, que
o instituto da usucapião ganha valor imprescindível, pois surge como um
instrumento de correção destas distorções, quebrando paradigmas e trazendo a
função social da propriedade e a dignidade da pessoa humana, para dentro de uma
das searas civilistas, cujo estudo outrora, dentro de uma visão conservadora,
dizia respeito meramente ao direito real sobre as coisas, como se objetos ou
coisas pudessem existir sem a devida necessidade e valoração humana. Depreendemos
tal do enunciado de Teori ZAVASCKI:
Por função social da
propriedade há de se entender o princípio que diz respeito à utilização dos
bens, e não à sua titularidade jurídica, a significar que sua força normativa
ocorre independentemente da específica consideração de quem detenha o título
jurídico de proprietário. Os bens, no seu sentido mais amplo, as propriedades,
genericamente consideradas, é que estão submetidas a uma destinação social, e
não o direito de propriedade em si mesmo.[7]
Assim, este trabalho presta-se
a analisar a partir de uma síntese histórica, o desenvolvimento evolutivo da
posse e da propriedade até a usucapião em nosso país, a importância deste para
que a propriedade cumpra sua função social, o impacto de sua desjudiciarização[8], analisando as inovações
nestes institutos, de maneira a compreender, como um direito tradicionalmente
buscado e alcançado somente através de uma sentença judicial, para ser
efetivado no presente, a partir de mera ata notarial seguida do crivo
comprobatório do Registrador, sendo estes os principais requisitos para a legalização
de posses não litigiosas.
Se insurge desta feita, a
necessidade de que a usucapião administrativa, seja absorvida sem maiores óbices
por registradores e tabeliães, sempre vorazes em suas notas de exigências e
prenotações, de maneira a fazer fluírem os registros daquelas posses, que foram
terminantemente protegidas e consagradas pela Constituição Federal de 1988, as
denominadas usucapiões constitucionais, pois a celeridade e desburocratização
devem ser o epicentro deste novo sistema.
Desta feita, a usucapião
extrajudicial, surge como uma espécie de ruptura formal definitiva, em relação
ao modelo liberal de propriedade, pois prevê seu fim social, utilização e
circulação enquanto necessidade humana, determinando à jurisdição que declare
válida uma propriedade por mero decurso de prazo quando é mansa, pacífica,
contínua e sem oposição. Tornando este instituto um escudo em defesa daqueles,
cuja ocupação imobiliária é de posse pública e inconteste e contra a qual não
pende ação reivindicatória, possessória ou qualquer outra que lhe turbe o
domínio.
Posse e propriedade, nasceram
gêmeos univitelinos, que separados na infância, tornaram-se inimigos na vida
adulta, para depois de muitíssimo tempo, conseguirem dentro da modernidade com
suas democracias, sentarem-se feito dois anciões cansados num mesmo banco,
buscando um nos olhos do outro, alguma forma consenso. O conceito de
propriedade, tido como mero exercício da posse, é tão antigo quanto à ideia de
família, não havendo como dissociar este mínimo núcleo social, da necessidade
que ele tem de manifestar-se em regra em uma casa, um lar, e este, não subsiste
sem a materialidade de uma moradia que, irreversivelmente encontrará sede em um
espaço geográfico chamado imóvel, cuja forma de ocupação e possibilidade de
titularidade e domínio, dependerá da lei vigente numa determinada época e em um
determinado local, tal como assevera Caio Mario da Silva PEREIRA:
Não existe um conceito
inflexível do direito de propriedade. Muito erra o profissional que põe os
olhos no direito positivo e supõe que os lineamentos legais do instituto
constituem a cristalização dos princípios em termos permanentes, ou que o
estágio atual da propriedade é a derradeira, definitiva fase de seu
desenvolvimento. Ao revés, evolve sempre, modifica-se ao sabor das injunções
econômicas, políticas, sociais e religiosas[9].
Havendo uma interdependência
natural entre família, moradia, posse e propriedade, cuja finalidade é dar
abrigo as pessoas e sem o qual, não se alcança nenhuma dignidade, pois esta se
perde diante da ausência de um conteúdo existencial mínimo. Explicita quanto a
isto a SARLET:
Hoje, contudo, não há
mais dúvidas de que o direito à moradia é um direito fundamental autônomo, de
forte conteúdo existencial, considerado, por alguns, até mesmo um direito de
personalidade (pelo menos naquilo em que vinculado à dignidade da pessoa humana
e às condições para o pleno desenvolvimento da personalidade).[10]
A função social da propriedade
e a ideia de um conteúdo existencial mínimo, desembocaram na necessária desjudiciarização
daqueles institutos carecedores de mera declaração de um direito já exercido e
conquistado, como forma de desafogar o judiciário, agilizar a concessão de
direito irrefutável e promover uma efetiva regularização fundiária. A
propriedade não deve ser utilizada de forma especulativa por meio de seu
abandono ou desuso. Confirma-nos o Douto Professor Orlando Gomes:
A propriedade implica para
todo detentor (...) a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza
social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma
certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria;
a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um
direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais
às quais deve responder[11].
E foi perseguindo a efetivação
desta nova perspectiva principiológica que a implantação do Novo Código de
Processo Civil concedeu à usucapião a instrumentalização necessária para que se
consolide por meio extrajudicial, ou seja, de forma meramente administrativa. Assim
nos propomos no presente trabalho, analisar o contexto atual da propriedade,
posse e os regimes jurídicos que possibilitam a usucapião judicial ou
administrativa, vislumbrando a necessidade de se refletir sobre possíveis
modulações que possibilitem o seu respectivo exercício fático, permitindo que
seus reflexos apontem para uma sociedade mais democrática livre e justa, na
qual moradia e propriedade não estejam em campos opostos do direito, mas
apontem conjuntamente, para um modelo onde sejam as pessoas a valorar os objetos
e não estes a qualificá-las segundo seu acúmulo.
Vivemos sob a égide da mais
democrática constituição de nossa história, ordenamento inovador, que
representou uma ruptura com o ideário liberal patrimonialista, fundando as bases
de nosso ordenamento no princípio da dignidade da pessoa humana, atribuindo a
este o status de valor fundamental que cria para o Estado a obrigação de
ofertar aos seus cidadãos um conteúdo existencial mínimo. Assim nos ensina Luís
Roberto BARROSO: O interesse público primário é a razão de ser do Estado e
sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar
social. Estes são os interesses de toda a sociedade[12].
Denominados direitos sociais
estão instituídos no art. 6º da Constituição Federal e disciplinados ao longo
do texto: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Dentre
estes, a moradia é um dos mais controversos, pois encontra resistência ao
confrontar-se com o ranço patrimonialista do direito de propriedade, que se
move num ambiente de ideias puramente econômicas e estratificadas. Diz-nos
BARROSO:
A triste verdade é que
o Brasil jamais se libertou dessa herança patrimonialista. Tem vivido assim,
por décadas a fio, sob o signo da má definição do público e do privado. Pior:
sob a atávica apropriação do Estado e do espaço público pelo interesse privado
dos segmentos sociais dominantes. Do descobrimento ao início do terceiro
milênio, uma história feita de opressão, insensibilidade e miséria. (...)
jamais permitindo a consolidação do modelo liberal e tampouco de um Estado
verdadeiramente social. De visível mesmo, a existência paralela e onipresente
de um Estado corporativo, cartorial, financiador dos interesses da burguesia
industrial, sucessora dos senhores de escravo e dos exportadores de café[13].
Contudo, a proliferação humana
e a necessidade de acomodar com dignidade um contingente cada vez maior de
pessoas, tornou elitista e inviável a percepção patrimonialista liberal, dando
impulso ao surgimento de leis que visam uma maior racionalização e socialização
dos espaços, forçando as instituições públicas governamentais a firmarem
posição em prol dos direitos sociais difusos em detrimento dos meros interesses
econômicos individuais. A moradia é o
refúgio da pessoa humana e de sua família e por isto enseja valoração e
proteção à sua identidade, TARTUCE assim o ensina:
Concretamente,
é por meio da propriedade que a pessoa se sente realizada, principalmente
quando tem um bem próprio para a sua residência. Nesse plano, a morada da
pessoa é o local propício para a perpetuação da sua dignidade (...). Em
verdade, o direito à vida digna, dentro da ideia de um patrimônio mínimo, começa com a propriedade da casa própria, tão
almejada nos meios populares. Isso justifica toda a preocupação deste autor em
relação a essa tutela[14].
A Carta Máxima em seu artigo 182 determina que: a
propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, sob pena de
aplicação dos instrumentos urbanísticos a seguir descritos: parcelamento,
utilização e edificação compulsórios, seguidos de imposto predial e territorial
progressivo no tempo e da desapropriação-sanção. No sentido de que a função
estatal transcende ao status quo de protetor patrimonial aponta-nos Maria
Berenice DIAS: Ainda que o Estado tenha o dever de regular as relações das
pessoas, não pode deixar de respeitar o direito à liberdade, mas tem o dever de
garantir o direito à vida, não só vida como mero substantivo, mas vida de forma
adjetivada: vida digna, vida feliz![15]
Esta dicotomia entre propriedade
clássica e moradia que encontra no patrimônio um ponto de divergência,
resolve-se pela pacificação social imposta pelo Estado, a partir da adoção de
mecanismos pelos quais se supera um direito solidificado por outro de
relevância maior. Eis a usucapião, instrumento milenar através do qual os
Estados têm legitimado aquele que se utiliza de espaço ocioso, fazendo deste
seu local de mantença e vivencia por tempo determinado e sem oposição. Assim
define Caio Mario da Silva PEREIRA:
(...). Usucapião
é a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo
estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em lei. Mais
simplificadamente, tendo em vista ser a posse que, no decurso do tempo e
associada às outras exigências, se converte em domínio, podemos repetir, embora
com a cautela de atentar para a circunstância de que não é qualquer posse senão
a qualificada: Usucapião é a aquisição
do domínio pela posse prolongada[16].
A usucapião sofreu
historicamente com o pejo de ser forma legalizada de apropriação indébita, ou
até mesmo usurpação. Deste preconceito, resultou que o instituto durante muito
tempo somente encontrou viabilidade pela via jurisdicional, pelo mesmo
procedimento de quem adentra em juízo necessitando substanciar a cognição com
grande contraditório e larga carga probatória, fazendo-se constituir por via
morosa, quando tratasse de mero direito a ser declarado e cuja demonstração de
posse pública, mansa, contínua, pacífica, duradoura e sem oposição firmada por
negativa de ação reivindicatória, em regra da mesma jurisdição que irá declarar
o direito, já seriam suficientes para legitimá-lo. Assim confirma Leonardo
BRANDELI:
Sempre se viu, no
direito brasileiro, a usucapião ser judicial, e de tal maneira esse costume
ficou incrustado no meio jurídico que ideia diversa pode soar estranha à
primeira vista, muito mais pela conformidade com a forma que sempre existiu do
que por uma impossibilidade jurídica bem argumentada em sentido contrário[17].
Ocorre
que vivemos tempos constitucionalizados, em que o infra ordenamento não
subsiste se não expressar e confluir conforme o espírito e a hermenêutica
imposta pela Carta Cidadã. Sobre esta necessária unidade legal, nos orientam as
palavras de Luís Roberto BARROSO: “O ordenamento jurídico é um sistema”. E no epicentro de
nossa estrutura normativa, reside a dignidade da pessoa humana enquanto luz
irradiadora para todo o nosso sistema. Endossa SARLET:
Neste
sentido, os direitos humanos (como direitos inerentes à própria condição e
dignidade humana) acabam sendo transformados em direitos fundamentais pelo
modelo positivista, incorporando-os ao sistema de direito positivo como
elementos essenciais, visto que apenas mediante um processo de
“fundamentalização” (precisamente pela incorporação às constituições), os
direitos naturais e inalienáveis da pessoa adquirem a hierarquia jurídica e seu
caráter vinculante em relação a todos os poderes constituídos no âmbito de um
Estado Constitucional.[18]
Um
sistema pressupõe ordem e unidade, devendo suas partes conviverem de maneira harmoniosa.
A quebra dessa harmonia deverá deflagrar mecanismos de correção destinados a
restabelecê-la[19]. A desjudiciarização
da usucapião decorre da necessidade de adequação deste instituto à proteção que
a Carta máxima lhe oferece. Neste sentido foi um avanço jurídico o artigo 1071
do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16.3.2015), que conforme nos
confirma Leonardo BRANDELLI, inseriu o artigo 216-A na Lei de Registros Públicos
instituindo o procedimento extrajudicial comum de usucapião, o qual pode ser
utilizado, por opção da parte e nas hipóteses em que não haja lide presente
(...) [20].
A propriedade, em especial
aquela voltada à moradia, desvinculou-se do conceito de instrumento a serviço
do acúmulo de bens ou mera ferramenta de especulação imobiliária. Para o nosso
ordenamento a propriedade tem como missão principal cumprir um fim econômico e
social. Não se trata de avanço isolado, mas de uma conjuntura, posição
confirmada por Flávia PIOVESAN:
Se, tradicionalmente, a
agenda de direitos humanos centrou-se na tutela de direitos civis e políticos
(...) testemunha-se, atualmente, a ampliação desta agenda tradicional, que
passa a incorporar novos direitos, com ênfase nos direitos econômicos, sociais
e culturais, no direito ao desenvolvimento, no direito à inclusão social e na
pobreza como violação de direitos[21].
O princípio da dignidade
humana, valorou a função social da propriedade de tal forma, que a moradia
passou a compor o rol daqueles itens considerados, como componentes de um conteúdo
existencial mínimo, sem o qual, a experiência humana se encontra ameaçada e
desprotegida. Ainda assim, mesmo diante de tal inversão conceitual, a
propriedade que cumpra sua finalidade econômica ou social, goza da mesma
proteção que a posse, e sob os mesmos fundamentos legais. Alarga-nos a
compreensão SARLET:
Apenas
em caráter ilustrativo, basta que se analise a garantia e direito fundamental
da propriedade privada para que se verifique que, a despeito de uma possível
dimensão exclusivamente patrimonial (que mesmo assim poderia ser tida como
fundamental) a propriedade encerra muitas vezes, notadamente em cumprindo a sua
função social, um conteúdo existencial e vinculado diretamente à própria
dignidade da pessoa, como ocorre, por exemplo, com o imóvel que serve de moradia
ao titular do domínio.[22]
[1]AUGUSTO, Eduardo Agostinho Arruda. Registro de imóveis: retificação de
registro e georreferenciamento, fundamento e prática. São Paulo: Saraiva, 2013.
p. 19.
[2] SCHIMIDT, Mario. Nova história critica. Nova Geração: 2011. São Paulo. p.9.
[4] PRADO JUNIOR, Caio. A Questão Agrária no Brasil. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1979.
p. 120.
[5] PRADO JUNIOR, Caio. História Econômica
do Brasil. 26. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. p.190.
[6] DINIZ, Maria Helena. et al. Novo Código Civil Comentado. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 619.
[7] ZAVASCKI, Teori Albino. A tutela da
posse na Constituição e no projeto do novo Código Civil. In: A reconstrução do Direito Privado.
Org. Judith Martins-Costa. São Paulo: RT, 2002. p. 844.
[8] NE: Terminologia utilizada por Leonardo
Brandelli em: BRANDELLI, Leonardo. Usucapião
administrativa: de acordo com o novo código de processo civil. São Paulo: Saraiva,
2016.
[9] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. Direitos
Reais. 22. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017. p. 86.
[10] SARLET, Ingo Wolfgang. MARINONI, Luís
Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Curso de
direito constitucional. 4. ed. ampl., incluindo novo capítulo sobre
princípios fundamentais – São Paulo: Saraiva, 2015. p. 659.
[11] GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 121.
[12] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional
contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4.
ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 62.
[13] Ibidem, p. 61.
[14] TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das coisas. 4.v. 6. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: Método, 2014. p. 96-97.
[15] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10. ed.
rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2015. p.24.
[16] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. Direitos
Reais. 22. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2017. p. 137.
[17] BRANDELLI, Leonardo. Usucapião administrativa: de acordo com
o novo código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p.18.
[18] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais:
uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11.
ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 20.
[19] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no
direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da
jurisprudência. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 58 e 59.
[20] BRANDELLI, Leonardo. Usucapião administrativa: de acordo com
o novo código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 28.
[21] PIOVESAN, Flávia. Direitos
humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2008.
p. 28-31.
[22] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais:
uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11.
ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p.60.
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