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A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROPRIEDADE, O SURGIMENTO DE SUA FUNÇÃO SOCIAL E A USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL ENQUANTO PROPULSORA DO CONTEÚDO EXISTENCIAL MÍNIMO





A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROPRIEDADE,
O SURGIMENTO DE SUA FUNÇÃO SOCIAL 
E A USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL ENQUANTO PROPULSORA DO CONTEÚDO EXISTENCIAL MÍNIMO


Para Suzete Zaira dos Santos, querida esposa e mãe. Em memória de Jimmy Harris Hendrix Estefani, Filho que vi e se foi. Bem como, em memória daqueles Filhos que se foram, sem que eu pudesse vê-los: meu coração é vossa casa.





AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha mãe, que mesmo sem saber, estabeleceu o contraponto exato do que eu quero ser. A meu Pai, que conseguiu me fazer crer, que um comportamento honrado e ético não é somente uma utopia. A minha esposa pela dedicação, amor, paciência e garrafas e mais garrafas de café servidos pelas madrugadas de pesquisa e escrita. A Rute Estefani, pelo carinho e benvindas ajudas. A Telles Ailton: herói, bombeiro e amigo nas horas mais difíceis. A Lucas Estefani, uma das pessoas mais honestas, verdadeiras e dignas que conheço, sem o qual, meus pés teriam sofrido, tão mais neste árduo caminho. A Raquel Estefani, que abdicou de sua adolescência, para ser mãe dos irmãos. Aos programas de inclusão social, que permitiram que pessoas de minha classe social, adentrassem à Academia. Aos contribuintes, que nortearam sem saber, este meu compromisso e atitude séria com a aprendizagem. Ao meu neto, Carlos Eduardo (Kadu), com a promessa de que compensaremos toda a distância destes meses. Agradeço também, enormemente, ao nobilíssimo Professor Francisco José Barbosa Nobre, cujo Manual da Usucapião Extrajudicial, me enviada ainda quente do prelo, possibilitou as referências doutrinárias, para indispensáveis capítulos deste trabalho, além do respeito e amizade demonstrada. E finalmente, a minha orientadora Profa. Maria Cecília Naréssi Munhoz Alffornalli, autoridade em direito de imagem, de quem muito me orgulho, pelo apoio e crença na qualidade deste texto, escrito com o rigor da pesquisa científica, mas sem abandonar o ritmo lírico e apaixonado da literatura.




Se eu tivesse que responder à seguinte pergunta: O que é escravatura? E respondesse sem hesitar: é o assassínio, o meu pensamento ficaria perfeitamente expresso. Porque então esta outra pergunta: o que é propriedade? Não posso responder simplesmente: é o roubo; ficando com a certeza que me entendem, embora esta segunda proposição, não seja mais que a primeira, transformada?

Pierre Joseph Prouhon – O que é a Propriedade?




Uma elite de sonhadores quis fazer a golpes de tinta e no lance fugidio do relâmpago, que um povo saído dos horrores da escravidão e analfabeto compreendesse a liberdade dentro da ordem e constituísse o país do progresso e das grandes luzes. O sonho acabou num acordar macabro: os autores dos ideais generosos, ou presos nas algemas inquebrantáveis da indiferença pública, ou lançados nos altares do civismo para não estorvarem as hienas no trabalho de refocilo sobre as carnes da pátria que não sabem amar!

Cel. David Carneiro – O Paraná e a Revolução Federalista.










RESUMO
Este trabalho, tem por objetivo discorrer o surgimento e a evolução da posse e da propriedade, desde a mera ocupação e uso do solo oriundo da revolução agrícola, passando pela antiguidade grega e seu antropocentrismo, pelo Império romano e suas codificações. A invenção da usucapião. O feudalismo. As revoluções inglesas: Puritana e Gloriosa. Os germes do liberalismo, iluminismo e revolução francesa. O surgimento da burguesia. Os comuns franceses. A mãe de todas as revoluções. A ascensão burguesa. Os camponeses traídos. O código civil de Napoleão. A absolutização da propriedade. O ingresso dos ideais iluministas na história brasileira. O Brasil Colônia e as Ordenações do Reino. A ocupação por meio de sesmarias. O Brasil Império e o poder político da aristocracia rural. A Constituição Imperial. Escravidão e crise agrária. A queda de um Imperador. O Registro do Vigário. A constituição da República. O Código Civil de 1916. A Carta Cidadã de 1988. O surgimento e a sedimentação em nosso ordenamento da função social da propriedade. O Conteúdo existencial mínimo. O princípio da dignidade da pessoa humana no que concerne à moradia. A desjudiciarização enquanto fenômeno jurisdicional e seus reflexos sobre a usucapião. A Usucapião administrativa, marco da relativização do direito de propriedade. A era Lula e seus reflexos para a posse e a propriedade. A Lei 11.977 de 2009, o embrião da usucapião extrajudicial. Sem a necessidade de uma revolução: o encontro “glorioso” dos governantes brasileiros, com o Império da Lei. A Senhora Dilma Rousseff, presidenta de um país dividido. As Pedaladas fiscais. O fim de um projeto populista e seu custo para a nação. Michel Temer, um governo suspeito, impopular e em crise: transitório e reformador? Uma leitura dos Artigos 1.071 do Código de Processo Civil e artigo 216-A da Lei de Registros Públicos. Os óbices a concretização da usucapião extrajudicial e sua solução. A Lei do Puxadinho. Reurb: um novo paradigma normativo para o ordenamento e ocupação urbana.
Palavras-chave: Posse. Propriedade. Desjudicialização. Usucapião administrativa. Reurb.


RESUMEN
Este trabajo, tiene por objetivo discurrir el surgimiento y la evolución de la posesión y de la propiedad, desde la mera ocupación y uso del suelo oriundo de la revolución agrícola, pasando por la antigüedad griega y su antropocentrismo, por el Imperio romano y sus codificaciones. La invención de la usucapión. El feudalismo. Las revoluciones inglesas: Puritana y Gloriosa. Los gérmenes del liberalismo, la iluminación y la revolución francesa. El surgimiento de la burguesía. Los comunes franceses. La madre de todas las revoluciones. La ascensión burguesa. Los campesinos traicionados. El código civil de Napoleón. La absolutización de la propiedad. El ingreso de los ideales iluministas en la historia brasileña. El Brasil Colonia y las Ordenaciones del Reino. La ocupación por medio de sesmarias. Brasil Imperio y el poder político de la aristocracia rural. La Constitución Imperial. Esclavitud y crisis agrarias. La caída de un emperador. El Registro del Vicario. La constitución de la República. El Código Civil de 1916. La Carta Ciudadana de 1988. El surgimiento y la sedimentación en nuestro ordenamiento de la función social de la propiedad. El contenido existencial mínimo. El principio de la dignidad de la persona humana en lo que concierne a la vivienda. La des judicialización como fenómeno jurisdiccional y sus reflejos sobre la usucapión. La Usucapión administrativa, marco de la relativización del derecho de propiedad. La era Lula y sus reflejos para la posesión y la propiedad. La Ley 11.977 de 2009, el embrión de la usucapión extrajudicial. Sin la necesidad de una revolución: el encuentro "glorioso" de los gobernantes brasileños, con el Imperio de la Ley. La Señora Dilma Rousseff, presidenta de un país dividido. Las Pedaladas fiscales. El fin de un proyecto populista y su costo para la nación. Michel Temer, un gobierno sospechoso, impopular y en crisis: ¿transitorio y reformador? Una lectura de los Artículos 1.071 del Código de Proceso Civil y artículo 216 A de la Ley de Registros Públicos. Los óbices la concreción de la usucapión extrajudicial y su solución. La Ley del Puxadinho. Reurb: un nuevo paradigma. 
Palabras clave: Posesión. Propiedad. Des judicialización. Usucapión administrativa. Reurb.




INTRODUÇÃO

Não há como pensar em moradia, sem a sinapse imediata da ideia de domínio sobre um pedaço de solo, e sua consecutiva utilização para proteção da família. Ilustra-nos habilmente Eduardo Agostinho Arruda AUGUSTO, ao afirmar que: “A terra é essencial para a vida, pois é o local onde se fixa o povo e de onde se extraem os meios de subsistência. A casa própria é um dos maiores desejos da atualidade, pois representa conforto, segurança e dignidade. ”[1]
Deriva daí a sacralidade da ideia de propriedade, que é tão antiga quanto à fixação do homem no solo. Pois quando do abandono do nomadismo coletor e adoção dos primeiros modelos agrários de plantio, nossa espécie viu-se diante de uma encruzilhada histórica, onde o preço da segurança alimentar forçou a uma valoração extrema daqueles espaços tidos como férteis, de maneira que rapidamente se ergueram fortificações defensivas e os homens uniram forças se organizando em clãs, tribos, povos e nações, sempre com o intuito de manter e se possível aumentar seu território e áreas de plantio. Com o início, das grandes fortificações, palácios, templos e canais de irrigação, em meio aos aglomeros humanos ancestrais, surgiram os primeiros conhecimentos técnicos específicos. Estes, durante muito tempo, foram perpetuados pelas primeiras formas de escrita, que por longuíssimo tempo, cumpriram o mero papel de um código que, apesar de público e corrente, era acessível somente a alguns privilegiados.[2]
Tudo o que somos enquanto indivíduos, e representamos na forma de coletividade, descende da evolução das relações que as sociedades que nos precederam, tinham com a posse e a propriedade. De modo, que ao admitirmos nossa descendência de um modelo histórico cultural grego-judaico-cristão, assumimos enquanto nossos os ideais e paradigmas, que se sustentaram o ocidente através da história, propiciando o surgimento do pensamento liberal e estruturando o monopólio moderno do sistema capitalista, onde a propriedade de imóveis transcendeu de tal forma a mera necessidade humana por moradia, que se tornou alvo de especulações financeiras, fazendo com que alguns Estados modernos, se vissem envoltos em crises de grande vulto, que se ancoraram na especulação imobiliária, terminando por causar danos a toda economia global: foram as chamadas “bolhas imobiliárias”.[3]
            As crises relativas ao uso e exploração da terra, estiveram ligadas, por muito tempo em nosso país, às questões agrárias. Desde o início de nossa colonização, a terra ocupou o centro de nosso modelo econômico, das Capitanias Hereditárias até o fim do Estado Novo, fomos um país exportador de monocultura agrária. Primeiro de cana de açúcar, depois a borracha e mais recentemente, o café. Pouco mudaria neste contexto até a chegada das primeiras fábricas.[4]
Somente com o advento da revolução industrial, se fortaleceram as propriedades comerciais e fabris (urbanização) e no seu entorno núcleos de moradias inicialmente voltadas àqueles que migravam das áreas rurais (êxodo rural) e que viriam a compor a mão de obra propulsora das primeiras fábricas, ocasionando uma forma inédita de fracionamento do solo, na qual um número cada vez maior de pessoas saiu do seu habitat de origem, passando a se concentrar em pontos específicos devido à necessidade de moradia e trabalho, ocasionando em ambos os ambientes o convívio cada vez maior de um número elevado de pessoas reduzidas a espaços mínimos. No dia respeito ao campo, com a diminuição da população e aumento da demanda por gêneros alimentícios, oriunda das cidades que se formavam, o pequeno produtor passou por significativa melhora.[5]
Por força da necessidade humana, em especial sua capacidade de multiplicar-se geometricamente, estes espaços geográficos alçaram o status de valiosos bens, não por acaso, o chamado liberalismo econômico eclodido dos ideais da Revolução Francesa e que fundou o capitalismo, tinha como um de seus fundamentos pétreos, uma visão arcaica da propriedade, defendendo que a transmissão da titularidade desta deveria dar-se somente por justo título, ou seja, a vontade manifesta do proprietário e detentor de título oficial e público seja por doação, alienação ou no caso de falecimento em decorrência do inventario, testamento e consecutiva partilha, numa visão quase que absolutista do direito de propriedade. Durante muito tempo foi este o modelo que imperou em todo o ocidente, inclusive no Brasil, onde a exigência de justo título é resquício do liberalismo econômico, sendo que esta visão clássica somente foi legalmente corrigida com a Carta Magna de 1988, também denominada Constituição cidadã.[6]
Ocorre que a fragmentação, pressa e informalidade, características destes dias tidos como pós-modernos, somados a herança portuguesa do hábito de transmissão informal da posse, domínio e propriedade, fizeram com que a as leis que regem o direito imobiliário atual, no que tange a obrigatoriedade de escrituração e registro, pusessem uma imensa quantidade de imóveis urbanos e rurais para fora do universo legal de transmissão, ficando estes por décadas sem a proteção eficaz que somente o registro legal traz, seja por que o real proprietário, há muitos anos, fracionou e vendeu por instrumento particular área sua, sem aprovação do órgão público responsável para o projeto, ou por que titulares de mera posse transmitiram de um posseiro para outro durante longo tempo o imóvel por mero contrato verbal ou particular, ou, mesmo quando terceiros de má fé alienam frações de imóveis dos quais não possuem posse ou propriedade, devido ao fato de o saberem abandonados a muitíssimo tempo, ocorrendo em todos os casos, destes imóveis jamais serem reivindicados pelos detentores dos títulos registrais, sendo que em todos estes casos, raramente estes documentos particulares de transmissão resistem ao tempo.
É dentro desta realidade, que o instituto da usucapião ganha valor imprescindível, pois surge como um instrumento de correção destas distorções, quebrando paradigmas e trazendo a função social da propriedade e a dignidade da pessoa humana, para dentro de uma das searas civilistas, cujo estudo outrora, dentro de uma visão conservadora, dizia respeito meramente ao direito real sobre as coisas, como se objetos ou coisas pudessem existir sem a devida necessidade e valoração humana. Depreendemos tal do enunciado de Teori ZAVASCKI:

Por função social da propriedade há de se entender o princípio que diz respeito à utilização dos bens, e não à sua titularidade jurídica, a significar que sua força normativa ocorre independentemente da específica consideração de quem detenha o título jurídico de proprietário. Os bens, no seu sentido mais amplo, as propriedades, genericamente consideradas, é que estão submetidas a uma destinação social, e não o direito de propriedade em si mesmo.[7]

Assim, este trabalho presta-se a analisar a partir de uma síntese histórica, o desenvolvimento evolutivo da posse e da propriedade até a usucapião em nosso país, a importância deste para que a propriedade cumpra sua função social, o impacto de sua desjudiciarização[8], analisando as inovações nestes institutos, de maneira a compreender, como um direito tradicionalmente buscado e alcançado somente através de uma sentença judicial, para ser efetivado no presente, a partir de mera ata notarial seguida do crivo comprobatório do Registrador, sendo estes os principais requisitos para a legalização de posses não litigiosas.
Se insurge desta feita, a necessidade de que a usucapião administrativa, seja absorvida sem maiores óbices por registradores e tabeliães, sempre vorazes em suas notas de exigências e prenotações, de maneira a fazer fluírem os registros daquelas posses, que foram terminantemente protegidas e consagradas pela Constituição Federal de 1988, as denominadas usucapiões constitucionais, pois a celeridade e desburocratização devem ser o epicentro deste novo sistema.
Desta feita, a usucapião extrajudicial, surge como uma espécie de ruptura formal definitiva, em relação ao modelo liberal de propriedade, pois prevê seu fim social, utilização e circulação enquanto necessidade humana, determinando à jurisdição que declare válida uma propriedade por mero decurso de prazo quando é mansa, pacífica, contínua e sem oposição. Tornando este instituto um escudo em defesa daqueles, cuja ocupação imobiliária é de posse pública e inconteste e contra a qual não pende ação reivindicatória, possessória ou qualquer outra que lhe turbe o domínio.
Posse e propriedade, nasceram gêmeos univitelinos, que separados na infância, tornaram-se inimigos na vida adulta, para depois de muitíssimo tempo, conseguirem dentro da modernidade com suas democracias, sentarem-se feito dois anciões cansados num mesmo banco, buscando um nos olhos do outro, alguma forma consenso. O conceito de propriedade, tido como mero exercício da posse, é tão antigo quanto à ideia de família, não havendo como dissociar este mínimo núcleo social, da necessidade que ele tem de manifestar-se em regra em uma casa, um lar, e este, não subsiste sem a materialidade de uma moradia que, irreversivelmente encontrará sede em um espaço geográfico chamado imóvel, cuja forma de ocupação e possibilidade de titularidade e domínio, dependerá da lei vigente numa determinada época e em um determinado local, tal como assevera Caio Mario da Silva PEREIRA:
        
Não existe um conceito inflexível do direito de propriedade. Muito erra o profissional que põe os olhos no direito positivo e supõe que os lineamentos legais do instituto constituem a cristalização dos princípios em termos permanentes, ou que o estágio atual da propriedade é a derradeira, definitiva fase de seu desenvolvimento. Ao revés, evolve sempre, modifica-se ao sabor das injunções econômicas, políticas, sociais e religiosas[9].

Havendo uma interdependência natural entre família, moradia, posse e propriedade, cuja finalidade é dar abrigo as pessoas e sem o qual, não se alcança nenhuma dignidade, pois esta se perde diante da ausência de um conteúdo existencial mínimo. Explicita quanto a isto a SARLET:

Hoje, contudo, não há mais dúvidas de que o direito à moradia é um direito fundamental autônomo, de forte conteúdo existencial, considerado, por alguns, até mesmo um direito de personalidade (pelo menos naquilo em que vinculado à dignidade da pessoa humana e às condições para o pleno desenvolvimento da personalidade).[10]

A função social da propriedade e a ideia de um conteúdo existencial mínimo, desembocaram na necessária desjudiciarização daqueles institutos carecedores de mera declaração de um direito já exercido e conquistado, como forma de desafogar o judiciário, agilizar a concessão de direito irrefutável e promover uma efetiva regularização fundiária. A propriedade não deve ser utilizada de forma especulativa por meio de seu abandono ou desuso. Confirma-nos o Douto Professor Orlando Gomes:
A propriedade implica para todo detentor (...) a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder[11].
                 
E foi perseguindo a efetivação desta nova perspectiva principiológica que a implantação do Novo Código de Processo Civil concedeu à usucapião a instrumentalização necessária para que se consolide por meio extrajudicial, ou seja, de forma meramente administrativa. Assim nos propomos no presente trabalho, analisar o contexto atual da propriedade, posse e os regimes jurídicos que possibilitam a usucapião judicial ou administrativa, vislumbrando a necessidade de se refletir sobre possíveis modulações que possibilitem o seu respectivo exercício fático, permitindo que seus reflexos apontem para uma sociedade mais democrática livre e justa, na qual moradia e propriedade não estejam em campos opostos do direito, mas apontem conjuntamente, para um modelo onde sejam as pessoas a valorar os objetos e não estes a qualificá-las segundo seu acúmulo.
Vivemos sob a égide da mais democrática constituição de nossa história, ordenamento inovador, que representou uma ruptura com o ideário liberal patrimonialista, fundando as bases de nosso ordenamento no princípio da dignidade da pessoa humana, atribuindo a este o status de valor fundamental que cria para o Estado a obrigação de ofertar aos seus cidadãos um conteúdo existencial mínimo. Assim nos ensina Luís Roberto BARROSO: O interesse público primário é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são os interesses de toda a sociedade[12].
Denominados direitos sociais estão instituídos no art. 6º da Constituição Federal e disciplinados ao longo do texto: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Dentre estes, a moradia é um dos mais controversos, pois encontra resistência ao confrontar-se com o ranço patrimonialista do direito de propriedade, que se move num ambiente de ideias puramente econômicas e estratificadas. Diz-nos BARROSO:
A triste verdade é que o Brasil jamais se libertou dessa herança patrimonialista. Tem vivido assim, por décadas a fio, sob o signo da má definição do público e do privado. Pior: sob a atávica apropriação do Estado e do espaço público pelo interesse privado dos segmentos sociais dominantes. Do descobrimento ao início do terceiro milênio, uma história feita de opressão, insensibilidade e miséria. (...) jamais permitindo a consolidação do modelo liberal e tampouco de um Estado verdadeiramente social. De visível mesmo, a existência paralela e onipresente de um Estado corporativo, cartorial, financiador dos interesses da burguesia industrial, sucessora dos senhores de escravo e dos exportadores de café[13].

Contudo, a proliferação humana e a necessidade de acomodar com dignidade um contingente cada vez maior de pessoas, tornou elitista e inviável a percepção patrimonialista liberal, dando impulso ao surgimento de leis que visam uma maior racionalização e socialização dos espaços, forçando as instituições públicas governamentais a firmarem posição em prol dos direitos sociais difusos em detrimento dos meros interesses econômicos individuais.  A moradia é o refúgio da pessoa humana e de sua família e por isto enseja valoração e proteção à sua identidade, TARTUCE assim o ensina:

Concretamente, é por meio da propriedade que a pessoa se sente realizada, principalmente quando tem um bem próprio para a sua residência. Nesse plano, a morada da pessoa é o local propício para a perpetuação da sua dignidade (...). Em verdade, o direito à vida digna, dentro da ideia de um patrimônio mínimo, começa com a propriedade da casa própria, tão almejada nos meios populares. Isso justifica toda a preocupação deste autor em relação a essa tutela[14].

A Carta Máxima em seu artigo 182 determina que: a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, sob pena de aplicação dos instrumentos urbanísticos a seguir descritos: parcelamento, utilização e edificação compulsórios, seguidos de imposto predial e territorial progressivo no tempo e da desapropriação-sanção. No sentido de que a função estatal transcende ao status quo de protetor patrimonial aponta-nos Maria Berenice DIAS: Ainda que o Estado tenha o dever de regular as relações das pessoas, não pode deixar de respeitar o direito à liberdade, mas tem o dever de garantir o direito à vida, não só vida como mero substantivo, mas vida de forma adjetivada: vida digna, vida feliz![15]
            Esta dicotomia entre propriedade clássica e moradia que encontra no patrimônio um ponto de divergência, resolve-se pela pacificação social imposta pelo Estado, a partir da adoção de mecanismos pelos quais se supera um direito solidificado por outro de relevância maior. Eis a usucapião, instrumento milenar através do qual os Estados têm legitimado aquele que se utiliza de espaço ocioso, fazendo deste seu local de mantença e vivencia por tempo determinado e sem oposição. Assim define Caio Mario da Silva PEREIRA:

 (...). Usucapião é a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em lei. Mais simplificadamente, tendo em vista ser a posse que, no decurso do tempo e associada às outras exigências, se converte em domínio, podemos repetir, embora com a cautela de atentar para a circunstância de que não é qualquer posse senão a qualificada: Usucapião é a aquisição do domínio pela posse prolongada[16].

A usucapião sofreu historicamente com o pejo de ser forma legalizada de apropriação indébita, ou até mesmo usurpação. Deste preconceito, resultou que o instituto durante muito tempo somente encontrou viabilidade pela via jurisdicional, pelo mesmo procedimento de quem adentra em juízo necessitando substanciar a cognição com grande contraditório e larga carga probatória, fazendo-se constituir por via morosa, quando tratasse de mero direito a ser declarado e cuja demonstração de posse pública, mansa, contínua, pacífica, duradoura e sem oposição firmada por negativa de ação reivindicatória, em regra da mesma jurisdição que irá declarar o direito, já seriam suficientes para legitimá-lo. Assim confirma Leonardo BRANDELI:

Sempre se viu, no direito brasileiro, a usucapião ser judicial, e de tal maneira esse costume ficou incrustado no meio jurídico que ideia diversa pode soar estranha à primeira vista, muito mais pela conformidade com a forma que sempre existiu do que por uma impossibilidade jurídica bem argumentada em sentido contrário[17].

Ocorre que vivemos tempos constitucionalizados, em que o infra ordenamento não subsiste se não expressar e confluir conforme o espírito e a hermenêutica imposta pela Carta Cidadã. Sobre esta necessária unidade legal, nos orientam as palavras de Luís Roberto BARROSO:O ordenamento jurídico é um sistema”. E no epicentro de nossa estrutura normativa, reside a dignidade da pessoa humana enquanto luz irradiadora para todo o nosso sistema. Endossa SARLET:

Neste sentido, os direitos humanos (como direitos inerentes à própria condição e dignidade humana) acabam sendo transformados em direitos fundamentais pelo modelo positivista, incorporando-os ao sistema de direito positivo como elementos essenciais, visto que apenas mediante um processo de “fundamentalização” (precisamente pela incorporação às constituições), os direitos naturais e inalienáveis da pessoa adquirem a hierarquia jurídica e seu caráter vinculante em relação a todos os poderes constituídos no âmbito de um Estado Constitucional.[18]

Um sistema pressupõe ordem e unidade, devendo suas partes conviverem de maneira harmoniosa. A quebra dessa harmonia deverá deflagrar mecanismos de correção destinados a restabelecê-la[19]. A desjudiciarização da usucapião decorre da necessidade de adequação deste instituto à proteção que a Carta máxima lhe oferece. Neste sentido foi um avanço jurídico o artigo 1071 do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16.3.2015), que conforme nos confirma Leonardo BRANDELLI, inseriu o artigo 216-A na Lei de Registros Públicos instituindo o procedimento extrajudicial comum de usucapião, o qual pode ser utilizado, por opção da parte e nas hipóteses em que não haja lide presente (...) [20].
A propriedade, em especial aquela voltada à moradia, desvinculou-se do conceito de instrumento a serviço do acúmulo de bens ou mera ferramenta de especulação imobiliária. Para o nosso ordenamento a propriedade tem como missão principal cumprir um fim econômico e social. Não se trata de avanço isolado, mas de uma conjuntura, posição confirmada por Flávia PIOVESAN:

Se, tradicionalmente, a agenda de direitos humanos centrou-se na tutela de direitos civis e políticos (...) testemunha-se, atualmente, a ampliação desta agenda tradicional, que passa a incorporar novos direitos, com ênfase nos direitos econômicos, sociais e culturais, no direito ao desenvolvimento, no direito à inclusão social e na pobreza como violação de direitos[21].

O princípio da dignidade humana, valorou a função social da propriedade de tal forma, que a moradia passou a compor o rol daqueles itens considerados, como componentes de um conteúdo existencial mínimo, sem o qual, a experiência humana se encontra ameaçada e desprotegida. Ainda assim, mesmo diante de tal inversão conceitual, a propriedade que cumpra sua finalidade econômica ou social, goza da mesma proteção que a posse, e sob os mesmos fundamentos legais. Alarga-nos a compreensão SARLET:
Apenas em caráter ilustrativo, basta que se analise a garantia e direito fundamental da propriedade privada para que se verifique que, a despeito de uma possível dimensão exclusivamente patrimonial (que mesmo assim poderia ser tida como fundamental) a propriedade encerra muitas vezes, notadamente em cumprindo a sua função social, um conteúdo existencial e vinculado diretamente à própria dignidade da pessoa, como ocorre, por exemplo, com o imóvel que serve de moradia ao titular do domínio.[22]





[1]AUGUSTO, Eduardo Agostinho Arruda. Registro de imóveis: retificação de registro e georreferenciamento, fundamento e prática. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 19.
[2] SCHIMIDT, Mario. Nova história critica. Nova Geração: 2011. São Paulo. p.9.
[4] PRADO JUNIOR, Caio. A Questão Agrária no Brasil. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1979. p. 120.
[5] PRADO JUNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. 26. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. p.190.
[6] DINIZ, Maria Helena. et al. Novo Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 619.
[7] ZAVASCKI, Teori Albino. A tutela da posse na Constituição e no projeto do novo Código Civil. In: A reconstrução do Direito Privado. Org. Judith Martins-Costa. São Paulo: RT, 2002. p. 844.
[8] NE: Terminologia utilizada por Leonardo Brandelli em: BRANDELLI, Leonardo. Usucapião administrativa: de acordo com o novo código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 2016.
[9] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. Direitos Reais. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 86.
[10] SARLET, Ingo Wolfgang. MARINONI, Luís Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 4. ed. ampl., incluindo novo capítulo sobre princípios fundamentais – São Paulo: Saraiva, 2015. p. 659.
[11] GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 121.
[12] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed.  São Paulo: Saraiva, 2013. p. 62.
[13] Ibidem, p. 61.
[14] TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das coisas. 4.v. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2014. p. 96-97.
[15] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2015. p.24.
[16] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. Direitos Reais. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 137.
[17] BRANDELLI, Leonardo. Usucapião administrativa: de acordo com o novo código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p.18.
[18] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 20.
[19] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 58 e 59.
[20] BRANDELLI, Leonardo. Usucapião administrativa: de acordo com o novo código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 28.
[21] PIOVESAN, Flávia.  Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 28-31.
[22] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p.60.

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