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A Importância da Relativização da Propriedade diante de sua Função Social e da Existência de um Conteúdo Existencial Mínimo


Do primeiro despertar, entre nosso amor pela terra e a descoberta moderna de que o planeta é Gaia, um grande corpo vivo do qual somos apenas uma parte, dez mil anos se passaram. O símio rude se ergueu bípede. Seu movimento de pinça nas mãos deu-lhe agilidade. A necessidade de superar a fome e as extinções, fizeram-no descobrir nos objetos, mais que elementos da paisagem, mas instrumentos, incialmente utilizados para a caça, dentro de uma vida nômade, seriam posteriormente, adaptados à agricultura.
Este domínio do plantio e colheita, de um determinado gênero alimentício, em regra alguma espécie de cevada ou trigo, impuseram por força do excedente de grãos, a fixação no lugar fértil, para a partir dele, extrair a sobrevivência e ali formar um núcleo de paz, proteção e convívio familiar.
Nas origens de nossa sociedade, a mera posse de um pedaço de chão para plantio e moradia, já determinavam o titular do domínio como proprietário, não necessitando este, de nenhum documento ou prova, que não o uso contínuo e pacífico daquela fração de solo, de forma que esta, em seus primórdios, já cumpria sua função social.
Com o advento da revolução agrícola, o aumento populacional, o surgimento dos mitos e a ascensão das classes sacerdotais, gradativamente foram sendo retirados os poderes do “paeter” família, sobre o próprio destino, bem como qualquer tipo de garantia sobre seus bens.
Aos poucos, com o crescimento dos grupos familiares formando tribos, clãs e nações, sob a perspectiva da segurança e proteção, as sociedades humanas formaram seus exércitos e permitiram o aparecimento líderes, chefes e outras formas de autoridade, que rapidamente criariam uma casta e visando perpetuar-se no poder, passariam o comando e propriedade de coisas e pessoas, genealogicamente de pai para filho.
Fruto, do aumento geométrico do contingente humano, e sofisticação das estruturas sociais, floresceram os Impérios, que rapidamente alteraram o controle sobre todas as coisas, inclusive no que se refere à posse e a propriedade. Estas, migrariam das mãos das famílias para o poder de Reis e Imperadores. Assim, aquilo que era natural, ou seja, um homem e sua família disporem de um pedaço de chão
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para viver, tornou-se uma espécie de concessão ou benesse, a ser conseguida junto àqueles que insurgiram parar governar homens, mas com o passar do tempo, quiseram manipular os mitos, criando religiões e suas próprias “verdades”, tornando-se representantes dos deuses, quando não, a encarnação, da própria divindade. E desta maneira, donos de tudo e de todos, num mundo onde imperava a crença geocêntrica, a ordem de todas as coisas, girava na verdade, em torno dos Reis.
Coube aos gregos um passo gigantesco rumo ao antropocentrismo. Os modelos dinásticos encontraram na filosofia grega o seu contraponto. O helenismo, da forma em que foi absorvido pela modernidade, gritava ao mundo ser o “homem a medida de todas as coisas”. E não distinguia para tanto a figura de um servo ou de um rei, pois ambos poderiam se quisessem, descobrir-se livres, a partir da filosofia, que era nos primórdios, um mero aprender a pensar. As ideias e conceitos não pertenciam a uma classe ou raça específica, mas a todos os homens dispostos a pensar com método.
No que diz respeito à propriedade, a Grécia vivenciou seus dois modelos: o primeiro fundado no domínio da posse voltada para o uso e o segundo na propriedade garantida pelo Estado, sendo um dos primeiros povos a vincular o domínio da propriedade, enquanto requisito para o exercício da cidadania, incluindo para a transmissão desta, rituais que garantiam a intervenção de possíveis terceiros, numa forma rudimentar de publicidade.
Os gregos influenciariam de tal forma os romanos, que a visão destes sobre a propriedade, que na antiguidade, era fundada na necessidade quase sacra do plantio voltado para a alimentação, se alteraria de tal forma, que o ócio praticado pelos 5% de cidadãos gregos, passou a fazer parte da cultura da aristocracia de Roma.
Fundamenta-se então, uma crença de desvalor quanto ao trabalho, que passa a ser visto como uma forma de castigo e tortura reservada a camponeses, artesãos, servos e escravos. Surgindo deste contexto, a nobreza indolente e o preconceito contra as camadas mais simples, cujo labor mais rude, vida mais hostil e distanciamento das técnicas e conhecimentos, os jogaria na vala dos miseráveis ou comuns. Esta visão distorcida quanto ao labor, somente seria revista a partir de Lutero e o protestantismo, quando a percepção de legalidade e concepção de fé e riqueza seriam colocadas em xeque.
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O exemplo dos gregos, transformou o modelo romano, mas estes foram além dos marcos fundados pela legislação helênica, pois necessitando controlar uma vasta região, na qual havia se transformado o Império, tiveram que obrigatoriamente impor a ordem e para tal, buscaram legislar sobre todas as coisas, inclusive a posse e a propriedade, estas em especial, como meio de pacificar as relações entre os povos dominados e organizar a produção alimentícia.
Seu avanço conceitual e normativo, no que se refere a estes institutos, foi de tal envergadura, que suas terminologias e alcance, adentraram a modernidade chegando aos dias atuais.
Em Roma, percebemos com clareza a transição da propriedade familiar, para o sistema de escrituração garantido por um poder central, forma que esmaeceria com o declínio romano, e gradualmente seria substituído pela representação por Senhores: foram os feudos os primeiros a irromper e fortalecer-se, conforme o Império definhava, fazendo surgir, a figura do chefe feudal, dono de grandes porções de terras, onde qualquer pessoa que ali se fixasse, passaria a submeter-se ao seu poder e de alguma forma, a ser de sua propriedade.
Num tempo, em que eram ilimitadas e invisíveis as fronteiras, antes da formação das Nações modernas que retalhariam o mundo, os feudos puderam crescer tendo como barreiras, somente aqueles povos vizinhos, que pudessem se contrapor militarmente ao seu avanço. O aumento populacional, somado ao modelo de arrendamento da terra em troca de proteção militar, originou um sistema que servilizou os camponeses, que num dado momento, percebendo-se a maioria, passaram a se organizar e se insurgir, obrigando os senhores feudais a unirem-se, formando uma estrutura de poder centralizada, que seria a base para o aparecimento da aristocracia e nobreza. Esta, ao escolher representantes entre seus pares, reinstituiria os Reis.
De forma que, novamente, nossa espécie erigiria um panteão sagrado, onde figurariam genealogicamente, divindades humanas, em meio ao surgimento das demarcações fronteiriças, embriões do que seriam, os Estados absolutistas, o mundo experimentaria uma transformação cultural sem precedentes. As navegações universalizaram culturas, e o acúmulo de conhecimento, colocou o homem sobre o limite que separa o mito da razão.
A queda de Constantinopla, fixou o marco histórico que pôs fim a Idade Média, declarando ultrapassada a turvação mais longa de nossa história, uma época sombria,
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em que o poder sobre a vida, a posse e a propriedade, estavam novamente nas mãos de Senhores, Reis e Monarcas, que agora absolutos e endossados pelo Clero, gozavam de um despotismo, que quis sob as luzes do renascimento, ser considerado esclarecido, originando uma casta que acreditou de forma enganosa, que uma eternidade duraria, sem que seu status quo fosse abalado.
A estabilidade deste modelo, começaria a ruir a partir do mercantilismo, pois com o advento das navegações, uma nova classe conseguiria acumular capital, passando a almejar o poder. Havia uma a luz no fim do túnel. Ao buscar na Grécia e nos ideais helênicos a principal fonte, a Renascença ressuscitou antigos conceitos como liberdade, igualdade, democracia e república, e estes, serviriam de base ideológica para a eclosão do iluminismo, filosofia liberal que forneceria o caminho ideológico para a ascensão da burguesia.
A história, por mais que se debruce habitualmente sobre a continuidade, encontra nas rupturas sua matéria prima ideal. De forma que 1000 anos de feudalismo, não conseguiram sufocar os ideais humanos supremos inventados pelos gregos. Se o renascimento foi capaz de esclarecer os nobres, o iluminismo que surgiria alimentado pelos mesmos ideais gregos amplificados, teria o condão de fazer o mesmo com os comuns? A resposta, é não. Estes permaneceriam incultos e manobráveis, desta forma adentrariam a modernidade, por ela passariam, chegando com este ranço ao mundo contemporâneo, onde o iletrado, será substituído pelo indivíduo tecnologicamente excluso e pelo analfabeto funcional.
Já pelo fim da Idade das Trevas, toda esta problemática “absolutista-feudal”, encontrou um campo fértil de batalha na Inglaterra, que ao submeter João Sem Terra à Magna Carta e Guilherme III à “Bill of Rights”, extraiu das Revoluções Puritana e Gloriosa, o substrato político que alimentaria o avanço econômico, ideológico, literário, artístico e filosófico que imporia o liberalismo e o iluminismo ao mundo.
Este, seria o epicentro intelectivo que alimentaria a Revolução francesa, onde a propriedade, a posse e as relações com terra de um modo geral, ocupariam o centro de uma revolta, que transformaria o mundo sob os gritos de famintos, que tão somente, pediriam por terra e pão.
Se 1789, representa para a modernidade, o início do modelo burguês de poder, para os comuns (artesãos, camponeses, trabalhadores braçais e tec.) significa somente o surgimento de um horizonte utópico a ser atingido. Traídos pelos
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burgueses, os menos intelectualizados e humildes, tiveram uma pequena melhora no seu modo de viver.
No caso da França, após a revolução, o avanço em suas condições, deu-se através da expropriação por parte do Estado, de terras que pertenciam ao Clero e aos nobres, mas o governo revolucionário ao assumir o poder sobre o Estado, ao invés de doa-las ao povo, as vendeu para este, com parcelas pagas a longo prazo, conjuntas a obrigatoriedade de arcar com impostos, tendo os tributos, maior proteção normativa que a posse, já nos primeiros artigos, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
O Brasil pela época da Revolução Francesa, já constava com quase três séculos de idade. Colonizado por Portugal, seu primeiro modelo de relação com o território foi o de capitanias hereditárias, e a de ocupação do solo foi o de “sesmarias”, meio pelo qual o Reino doava enormes porções de terras, cobrando como principal requisito, que fossem destinadas ao pastoreio ou plantio, dentro de um sistema onde havia uma relação direta entre a sobrevivência, ocupação do solo e a moradia, sendo o uso da terra pelas famílias, o imperativo que determinava a propriedade.
Contraditório, a forma inicial de ocupação geográfica do país, os nossos modelos normativos ignoraram a materialidade de nossa condição imobiliária, tal fica evidente quando nos debruçamos sobre a biografia de nossas Constituições, que são o plano normativo de nossa história, e que demonstraram por séculos, que fomos somente capazes de reproduzir por meio de de nossas Leis, os enunciados normativos da traição burguesa, que pôs acima de todos os ideais mais nobres do iluminismo, a proteção absoluta da propriedade.
Nossas quatro primeiras constituições, são basicamente libelos de proteção ao patrimônio e ao status quo vigente, de efetiva absolutização da propriedade, num país fundado e dominado pela posse de ocupação.
As leis de registro do vigário junto a outras formas registrais temporárias e elitistas, permitiriam que uma minoria adentrasse a escrituração e o registro, seja por que as posses prescindiam de justo título ou de boa-fé, mas também, devido à falta de informação e a ignorância generalizada, em um país ainda de maioria analfabeta, onde as distâncias e valores econômicos envolvidos, excluíram da proteção documental, grande parte dos possuidores.
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A função social da propriedade, surgida na Constituição Federal de 1946, tinha como escopo inicial, apenas permitir desapropriações por parte do Estado. Sua importância consiste, em expressar, mesmo que de forma distorcida, o enunciado de que, toda propriedade deve cumprir um papel econômico ou um fim social. Sentença normativa que seguiu seu natural progresso, evoluiu conceitualmente até encontrar-se em 1988, com a Carta Cidadã. Momento único de nossa história, onde os ideais gregos amplificados pelo iluminismo, influenciaram a elaboração de uma Constituição Federal garantidora, cujo epicentro irradiador é o Princípio da dignidade da pessoa humana.
Monumento normativo de nosso tempo, a Constituição Federal, protege os direitos chamados sociais, a partir de um conteúdo existencial mínimo, instituindo o que a doutrina denominou de “proibição da insuficiência”, que obriga o poder público em adotar intervenções orçamentárias e administrativas, através de políticas de implementação progressiva, mas sempre sob o prisma, da própria capacidade orçamentária do país, podendo o Estado conforme suas finanças, mudar as garantias mínimas em favor de garantias máximas.
A história da usucapião no Brasil, reflete com exatidão nossa evolução normativa. Vítima de preconceito durante as constituições patrimonialistas, transformou-se numa das grandes problemáticas nacionais. Não por acaso, as discussões sobre reforma agrária e regularização urbana, ocuparam por muito tempo a pauta política do país, sendo por muitas vezes motivo para crises sociais, incluindo em algumas delas, a quebra do regime democrático, resultando em Ditaduras assassinas e vergonhosas.
O modelo de “sesmarias”, deixaria como legado um sistema informal, inseguro, onde a posse desprotegida no campo, sofreria com turbações, invasões, grilagens, avanço desordenado da fronteira agrícola, a invasão de pastagens sobre florestas protegidas, a mineração e o sucateamento da agricultura familiar.
Já nos centros urbanos, com o advento fabril oriundo da industrialização, tiveram início as grandes concentrações de pessoas, quase sempre ocorrida às pressas e sem planejamento, originando favelas e a explosão quantitativa de bolsões humanos de miséria.
Uma Nação de dimensões geográficas, com tantos espaços vazios, terras devolutas e imóveis em abandono, não pode às luzes da Carta Federal, manter esta
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realidade sem alguma forma de intervenção legal, que permita a democratização do acesso à propriedade registrada.
Um primeiro passo foi dado por Lula através do Projeto Minha Casa Minha vida, por meio do qual um dos entes federativos, desapropria uma área sob prévia indenização, nelas constrói unidades habitacionais em parceria com o setor privado e o sistema financeiro, depois repassando-as para pessoas sem moradia que participem de programas sociais de assistência, que pagam por suas casas em até 20 anos, através de financiamentos feitos junto à Caixa Econômica Federal, dentro de um sistema que recolhe como entrada, todo o fundo de garantia do trabalhador, que vir a contratar o programa.
A crise causada pela bolha imobiliária americana, e que acabou arrastando as economias do mundo todo, somada as denúncias de corrupção, fizeram com que o desemprego aumentasse de forma alarmante no Brasil. Com o agravamento das finanças públicas e privadas, os mutuários foram perdendo a capacidade de pagamento, vendo-se obrigados a devolver os imóveis, perdendo os valores pagos e retornando para uma situação ainda mais gravosa, do que aquela em que se encontravam antes da “aquisição” da casa nova.
De maneira que a crise encontrou os mais pobres endividados e sem nenhum tipo de poupança para se socorrer, vendo-se forçados a devolver os bens que estavam em garantia fiduciária, voltando a socorrer-se com familiares, ou percebendo-se novamente presos ao aluguel.
A presidenta Dilma Rousseff, sancionou o novo Código de Processo Civil Brasileiro de 2015, o qual em seu artigo 1071, deu nova redação ao artigo 216-A da Lei de Registros Públicos, desjudicializando o instituto da usucapião, permitindo assim, sua efetivação desburocratizada pelo meio administrativo.
Entretanto, o referido dispositivo, ao exigir que o possuidor, apresentasse para registro, a anuência através de assinatura com firma reconhecida, do último proprietário do imóvel, ou na ausência deste a do cônjuge ou de seus herdeiros, inviabilizou na prática o funcionamento do novel instituto, pois além da dificuldade em encontrar tal pessoa, o possuidor quando o conseguia, esbarrava na negativa desta em anuir, mais gravoso ainda, é que seu silêncio era interpretado como discordância, impondo para estes casos, a obrigatoriedade da morosa via judicial.
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De forma que apesar de a Lei existir, sua aplicação restava inútil, e esta situação, somente sofreria alguma mudança, com a ascensão ao poder, do Sr. Michel Temer, vice na chapa da Senhora Rousseff, seria ele a transformar profundamente o regramento para legalização fundiária urbana e rural no Brasil.
Em meio as críticas, de que estava se dispondo a fazer reformas estruturais, quando deveria apenas, comandar um governo de transição, tornou-se titular da maior rejeição popular da história do país, dentro de um contexto turbulento, com inúmeros indícios de estar envolvido em corrupção, o Presidente Temer sancionou a Lei 13.465/17, carinhosamente chamada de Lei do Puxadinho, que além de garantir pela primeira vez em nosso infra ordenamento, proteção registral para frações imobiliárias inferiores a 250m², extinguiu a necessidade de anuência do último detentor de direitos registrais, imposta pela iniciativa infra legal de desjudicialização.
Teratológico pensar, que um direito meramente declaratório, venha a depender da vontade, assinatura ou qualquer forma de anuência, daquele que o perdeu e cuja vontade, se mitigada pelo prazo prescricional, não poderá ecoar mais no direito, sendo a usucapião, fruto da prescrição dúplice, tanto da ocupação aquisitiva mansa, pacífica e ininterrupta por parte do possuidor, como da inércia prescritiva do titular de direitos sobre a coisa, em movimentar-se em tempo hábil para protege-la.
Neste sentido, é enorme o caminho que avançamos, está instituída a usucapião administrativa, sendo que o rol de exigências registrais pertinentes a cada tipo de usucapião existente em nosso ordenamento, foi mantido conforme o disposto na Constituição e na legislação infraconstitucional, a grande mudança está no fato de que, os elementos probatórios, podem agora, ser apresentados diretamente ao registrador, junto com uma Ata notarial, feita pelo Tabelião da Comarca, que dará fé à narrativa de ocupação do possuidor, a partir de documentos probatórios e testemunhais, sem a necessidade da espera pelo transito em julgado de uma demorada sentença.
No entanto, se durante o procedimento registral surgir litígio, e sendo impossível a conciliação no âmbito administrativo, ou, no caso de exigências documentais que se mostrem intransponíveis, feitas pelo Registrador, restará o caminho da impugnação direta ao cartório, que se não puder solucionar, remeterá todo o procedimento para via da ação ordinária na justiça.
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Após 518 anos de história, sem derramarmos o sangue de nossos irmãos brasileiros, adentramos quanto à posse e a propriedade, a utilidade social que ela já possuía no fim do neolítico, a equidade aristotélica nascida na Grécia, fecundada no renascimento, gestada pelo iluminismo e escancarada ao mundo pela Revolução Francesa.
A moradia é o núcleo básico onde o indivíduo encontra numa família o seu primeiro ente social. É ela a permitir com sua proteção, que projetos de sobrevivência, educação, trabalho e etc., tenham um porto seguro de onde partir.
A Lei do Puxadinho, representa a maior democratização do acesso fundiário de nossa história, tendo quebrado inclusive o tabu, de que terras e imóveis públicos, não poderiam ser transmitidos diretamente para seus possuidores.
A terra, o imóvel e a moradia, estão entre os principais itens do conteúdo existencial mínimo, sem o qual o indivíduo, se encontra descoberto pelo Princípio da dignidade da pessoa humana. De forma que a função social, igualou posse e propriedade. Não havendo entre os dois institutos, uma escala diferente de valor que não seja a do pleno uso.
Estamos diante de uma evolução impactante, quase revolucionária: afinal, o possuidor de imóvel rural ou urbano, junto com seu advogado, tem aberta uma ampla perspectiva registral, da mesma maneira que o foi durante a Lei do Vigário, contudo, agora, de forma acessível e democrática.
Não há como negar, que nossa Nação refletiu com atraso todas as evoluções normativas dos Estados democráticos modernos, especialmente no que se refere a propriedade e a posse. Se hoje, a garantia de proteção à propriedade, se funda no seu uso e exploração econômica, e não simplesmente no título registral, podemos supor que retomamos a relação de uso que tínhamos com a terra, lá no pelo início da revolução agrícola, tempo de comunhão com o solo, quando os homens livres, no afã de ocupar espaços que pareciam infinitos, se espalharam pela Terra, sem jamais poder imaginar, que davam início a uma era de prosperidade, que poria no mundo, bilhões de pessoas espremidas em pequenos espaços, onde um pedaço de chão e um teto para morar, passaram a ser condição “sine qua non”, de uma existência digna.
Há uma espinha dorsal, que liga estes dez mil anos de história ocidental a um único roteiro, o caminho dos comuns rumo a dignidade, trajetória que se iniciou nas cavernas, mas que agora, dentro de casas e prédios, busca mais que um pequeno
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lugar ao sol, os comuns querem ser letrados, dignos e agentes capazes de definir em conjunto, seu próprio destino.
Precisamos estar conscientes, de que a desjudicialização é fenômeno novo, fruto desta modernidade líquida, apontada por Bauman, em que a urgência dos fatos sociais, não admite mais um direito engessado ou uma justiça morosa, tratasse de uma sociedade tecnológica e fluída, fundamentada na circulação quase que imediata das informações, onde a desburocratização, a publicidade e a transparência, ocupam a pauta do dia, em quase todas as discussões políticas.
As movimentações populares eclodidas em 2013, trouxeram à tona um novo perfil de cidadão e um novo país. Da mesma forma que Gutemberg e sua prensa, tiveram a capacidade de disseminar e enraizar a libertação protestante, o iluminismo e o modelo econômico liberal, a internet através de inúmeras ferramentas de integração entre as pessoas, tornou o indivíduo comum, aquele outrora chamado por Wilhelm Reich de Zé Ninguém, num cidadão melhor informado, talvez mais consciente, mas certamente mais crítico e participativo. As movimentações dos últimos anos, não foram sublevações pontuais, a Nação possui uma pauta cujos itens, foram escancarados nas ruas, ela está atenta ao seu futuro e consciente de suas necessidades e direitos mais fundamentais: os comuns acordaram e querem bem mais que pão.
Passados cinco séculos de nossa história, parafraseando Emmanuel Joseph Sieyès, nos perguntamos então: O que é o Terceiro Estado em nosso país? A divisão de nossa carga tributária responde: tudo. O que ele tem sido em toda a nossa história? Os escândalos de corrupção explicam: Nada. Então, o que ele quer? Não apenas ser alguma coisa, ele quer ser gente.
Nós, o povo, temos sido o Terceiro Estado brasileiro, buscando nossa sobrevivência e agarrando-nos, a cada milímetro de avanço normativo, nesta batalha social, crentes que assistimos a uma encruzilhada histórica, onde ressurgirá uma Nação mais ética, em que pessoas prevalecerão sobre coisas, e finalmente, as famílias poderão proteger seus filhos, permitindo que estes se lancem ao mundo, a partir da legalidade de um registro de imóveis, garantia da conquista de um espaço físico, mínimo existencial que oferecerá aos comuns, a dignidade que a pessoa humana só consegue encontrar, a partir da proteção e segurança de um lar.



End



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